pariscópio
Almodóvar integral
por Leonardo Sette
Nas últimas duas semanas, o verão se instalou
de vez em Paris – trazendo, como de hábito, (re)lançamentos de
clássicos em cópias novas (entre eles, O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro, que aqui se chama Antônio das
Mortes) e as belas e tradicionais projeções ao ar livre, no
Parc de la Villete. Mas, ainda olhando retrospectivamente, a primavera
será lembrada de maneira especial pelas passagens de Jean-Luc
Godard e Pedro Almodóvar, ocupando duas das maiores instituições
culturais da cidade.
Se há muito mais coisas a dizer sobre Godard no
Centro Georges Pompidou, comecemos com a integral de Almodóvar
na Cinemathèque Française – onde, aliás, retrospectivas integrais
não são novidade. Só desde a transferência para o novo prédio
em outubro de 2005, entre várias outras mostras temáticas e a
programação permanente de clássicos, já aconteceram as integrais
Cronenberg (com presença do cineasta), Friedkin (com presença
do cineasta), Isabelle Hupert (com presença da atriz), Renoir
e Rosselini. Mas a mostra dedicada a Almodóvar já surgiu destacada
das outras em sua concepção: às projeções dos 15 longas (de Pepi,
Luci, Bom, de 1980, até A Má Educação, 2004), somaram-se
conferências de especialistas, uma mostra “carta branca” (29 filmes
escolhidos pelo cineasta) e ainda uma sofisticada exposição (exposição
mesmo, como num museu de arte contemporânea). Sem contar que a
mostra teve início em abril, quando Paris estava prestes a se
encher de cartazes com o rosto de Penélope Cruz, e Volver
já tinha estreado na Espanha e sido visto pelos jornalistas franceses.
Paralelos
A verdade é que, dentro do evento Almodóvar na
Cinemateca, a coisa menos atraente foi a projeção de seus próprios
longas – a maioria já vistos e revistos pelo público parisiense
(não deu para entender porque a Cinemateca não incluiu os primeiros
curtas do diretor, em super 8). Mas, um dos aspectos de fato interessantes
foi a reunião desses filmes com os da tal “carta branca”, onde
o cineasta escolheu não somente títulos que admira, mas sobretudo
filmes que dialogam com os seus, entrelaçando-os todos na grade
de projeção de maneira declaradamente didática.
Numa situação como essa, pode ser oportuno não
saber muita coisa sobre o assunto. Foi assim, por exemplo, que
pude me surpreender assistindo finalmente a Opening Night
(1978), de John Cassavetes, e descobrindo ali a origem de toda
a sequência de abertura de Tudo sobre minha mãe (1999).
A relação entre os dois filmes, certamente já citada inúmeras
vezes, felizmente me havia escapado até então, permitindo a espontânea
constatação na projeção do filme de Cassavetes – assim como alguém
ainda mais desavisado deve ter apreciado ver pela primeira vez
Tudo sobre minha mãe, seguido de A Malvada (1950),
de Joseph L. Mankiewicz.
Mas,
peculiar mesmo foi encadear as sessões de três estranhos filmes
sobre freiras e visualizar de forma envolvente algumas das mais
ricas fontes almodovarianas, segundo o próprio cineasta. Às
17h de uma quinta-feira a cinemateca projetou Esa Mujer
(1969), de Mario Camus (o filme que Ignacio e Enrique vêem no
cinema em A Má Educação). Basta dizer que a história começa
com um grupo de freiras missionárias sendo estupradas por nativos,
entre elas a protagonista Soledad de Jesús (Sara Montiel) –
que, é claro, fica grávida. É apenas o começo de um verdadeiro
“filme-antologia do kitsch espanhol, melodrama hiperbólico
a serviço de Sara Montiel, a maior estrela de nosso cinema, dos
anos 50 aos 70”, como analisa Almodóvar no livrinho com a programação
de sua mostra.
Na sequência, a sessão das 19h30 exibiu o sombrio
Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger,
em que jovens freiras se mudam para um convento no Himalaia onde
se debaterão entre tentações libidinosas e hostilidade da população
local. Uma espécie de terror soft, católico-dark,
que prefiro deixar quem não viu descobrir tranquilamente. Finalmente,
ao olhar para o ingresso da sessão das 21h30 em minhas mãos,
perguntei-me pateticamente que filme de Almodóvar seria aquele.
O título em françês não dizia nada, e somente com o belo plano
dos créditos iniciais (junto com a marcante trilha sonora), reconheci
o divertido filme de freiras drogadas que no Brasil saiu com o
título de Maus Hábitos (certamente uma das raras felizes
modificações de títulos pela tradução) – Entre Tenieblas (1983)
é o título original.
Durante a projeção, a permanência
do cinema visto nas sessões anteriores produziam um certo efeito
iluminador da complexidade da obra – ou, no caso de Almodóvar,
da ausência de complexidade. A aula do cineasta sobre si mesmo
funcionou (ao menos para mim) como um de seus bons filmes :
através de retórica ao mesmo tempo barata e sofisticada; simples
e tocante. E ainda utilizando referências cinematográficas. Esse
“dia das freiras” foi na verdade apenas um dos capítulos do intensivo
oferecido pela Cinemateca. Vale olhar a lista com os demais 25 filmes da carta branca e tentar perceber os
outros laços de filiação – onde, a
grande ausência talvez tenha sido Hitchcock.
Cenários
Através
de um percurso em 7 salas, o visitante da exposição da Cinemateca
era guiado por monitores de plasma e projeções trazendo o próprio
Almodóvar, em close-up, olhando pra câmera, falando sobre
seus filmes – o que causa um efeito que remete formalmente ao
hoje tão desgastado personagem de Orwell. A
idéia é elementar: compor uma viagem pelo universo do diretor.
Há de tudo: roupas, cenários, quadros, objetos diversos, roteiros
originais, auto-retratos, fotos em geral. De fato,
fica sim uma leve impressão de atração de parque da Flórida. Mas
é tudo muito bonito e interessante, ainda assim.
A primeira sala compõe um painel biográfico da
infância e juventude: vê-se a câmera super 8 do cineasta iniciante,
fotos de família, recortes de jornal, máquinas de escrever e objetos
de trabalho do emprego que o então apenas Pedro mantinha, na Telefónica
em Madrid. Nas instalações-cenário, dois objetos
precisos são tratados de forma temática: a cama e o telefone.
Projetado numa cama de casal dentro de um quarto tipicamente incrementado,
Almodóvar comenta a presença desse objeto em suas tramas. Vê-se
em seguida a primeira transa entre os personagens de Antonio Banderas
e Victoria Abril em Ata-me (1989), o que produz um válido
comentário visual pelo fato de o unico ângulo de observação possível
ser o mesmo da câmera que enquadra os dois corpos projetados.
Fino elogio, em forma de imagem, à maneira com que a cena foi
filmada.
Ao
lado, numa sala de estar, quatro poltronas equipadas com pequenos
monitores trazem trechos de filmes e o mesmo Almodóvar onipresente.
Descobre-se logo que o som só pode ser ouvido através
dos aparelhos de telefone instalados diante de cada poltrona,
numa eficaz tentativa de transformar os visitantes em personagens.
Funciona mais para quem está observando de longe do que para quem
está sentado “interagindo”. O espectador transita numa mistura
de pura curtição frívolo-luxuosa e informação de fato enriquecedora.
Parece ao mesmo tempo enriquecedor e fútil ver no meio disso tudo
obras de Matisse, Miró, Francis Bacon, Picasso, Robert Mapplethorpe,
Mario Giacomelli, Jean Paul Gaultier – além de outros nomes menos
conhecidos (cujas obras aparentam estar mais bem situadas dentro
do todo da exposição).
Conversación
Em seu encontro com o público,
Almodóvar estava nitidamente cansado e aparentemente menos simpático
que o normal. A impressão é que o semblante fechado era proteção
prévia contra uma possível amenização do debate, fruto de sua
condição de popstar e do grande número de presentes na
sala – quando entrou na grande sala Henri Langlois para
debater com o público (que se espalhava por além dos 400 lugares),
Almodóvar trazia a aura do grande favorito à Palma de Ouro do
Festival de Cannes, que começaria algumas semanas depois.
O cineasta ditou dessa forma o tom da conversa
e, concentrado, teceu francas e concisas análises sobre seu trabalho,
inclusive sobre seus limites. Falou muito sobre A Lei do Desejo
(1987) e, para responder uma pergunta da platéia, explicou porque
não havia gostado da atuação de Eusébio Poncela no filme :
“O personagem era viciado em cocaína enquanto Eusébio em heróina.
E como eu mesmo estava na cocaína, ficou difícil”, disse. O comentário
foi desconcertante, obviamente, não pelo seu conteúdo, mas pela
forma séria e não-exibicionista como foi pronunciado. A platéia
adorou, sim. Mas Almodóvar só tocou no assunto num momento claramente
necessário, respondendo uma pergunta específica e passando logo
ao próximo tema. Falou ainda sobre personagens femininos, trabalho
de roteirista, influências e sobre o lugar do cinema entre as
artes hoje.
Entre
mostra de filmes, exposição e um debate de quase duas horas, é
difícil não se admirar com a excelência da Cinemateca Francesa.
Pessoalmente, deparo-me sempre com
o desejo quase juvenil de ver coisas parecidas no Brasil... Enquanto
isso, a próxima retrospectiva da Cinemateca já tem data marcada
e catálogo impresso : é a vez de George Cukor, cineasta que
como Almodóvar explorou bastante o universo feminino – e que tem
dois de seus filmes entre os 29 da carta branca do espanhol. A
Cinemateca Francesa interliga assim as duas mostras, e segue exercendo
sua ação veladamente didática, função que desempenha desde que
Henri Langlois (e não Bazin) fez nascer a Nouvelle Vague ao encher
de filmes os jovens François, Jacques, Claude, Eric e Jean-Luc.
N. do E.: Mais detalhes sobre a mostra e a exposição
podem ser encontrados no site da Cinemateca
Francesa. Para uma prévia com algumas das obras expostas,
veja este link.
editoria@revistacinetica.com.br
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