Alô Alô Terezinha, de
Nelson Hoineff (Brasil, 2009) por Cléber
Eduardo Resgate
da abjeção e recusa da permissividadeO mundo não
é só imagem, mas imagens são mundos. A onipresença do visual tem instalado uma
tolerância quase irrestrita com os usos e manipulações dessas imagens. Tudo pode,
vale tudo. Perde-se progressivamente a noção de limites para o visual, ganha-se
meteoricamente a interdição geral de interdições específicas. A ortodoxia de um
Jacques Rivette diante de um travelling de Kapó – revelador para
o critico do abjeto em Gillo Pontecorvo – é proibida pela ortodoxia da neutralidade.
Quando nada é proibido, estamos no reino da técnica, da ausência de problematização,
dos efeitos como qualquer coisa, de uma política da não-política, de um mundo
só de imagens, de vidas como massas de modelar, sem existência fora de quadro.
Mas os princípios do cinema, ao menos para nós em Cinética, não são rompidos com
a vida. O cinema é extensão e invenção, não um aparte, moldado por uma técnica
sem cabeça. Alô, Alô, Terezinha é um estimulante
à interdição. Não se está falando em interdições oficiais (de mercado, de censura
à realização, de proibição de exibição), mas de uma interdição crítica, que procura
deixar claro que, quando nos detemos no cinema, estamos operando essa análise
a partir de alguns princípios, que são anteriores à experiência de filmes específicos,
mas também são construídos a partir dessas experiências. E esses princípios são
tanto de afirmação como de recusa. Que fique claro, então, que antes de ser uma
análise sobre a eficiência narrativa de Alô, Alô, Terezinha ou de se restringir
a um reconhecimento de inteligência da parte de sua montagem, o que está em jogo,
a rigor, é a razão da recusa de sua eficiência e daquilo em nome do que ela está
a serviço. Nelson Hoineff, tele-jornalista de longa jornada
em programas de reportagem audiovisual, assina a direção. Seu documentário de
circo e auditório conduziu, por cortes e planos hiper-pensados, a massa ruidosa,
quando da sua estréia no Cine PE, ao delírio e à avalanche de risos. Toda
a permissividade é empregada para mostrar bastidores, opiniões e testemunhos sobre
o programa do Chacrinha. Com os famosos, alguns cuidados. Com ex-midiáticos da
efemeridade (ex-chacretes e ex-calouros), a estratégia é outra. Das chacretes,
sobretudo, ouvimos segredinhos sujos: quem transou com quem, quem é gay, um brochou,
outro não é grande coisa, Chacrinha pegou, a viúva é chifruda. Seria compreensível
em um programa do Nelson Rubens. Não importa somente, ainda com as chacretes,
o currículo sexual. É preciso que elas, claro, exponham suas formas. Algumas delas,
as mais solícitas às promessas da câmera-vampira. Não importa
se o diretor solicitou ou não solicitou afirmações e atitudes cênicas porque está
nas mãos dos realizadores a decisão de como usarem ou não qualquer material captado.
Há em Alô, Alô, Terezinha uma exploração de orfandade da mídia, numa variação
de Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. Vemos os efeitos do tempo sobre
os corpos, menos porque o valor de mercadoria desses corpos seja o mesmo de outros
tempos, e mais porque essa falta de valor precisa ser exposta e comparada à de
outros tempos. Para quê, exatamente? Em nome do quê? Apenas para se gerar uma
imagem patética, que provoca o riso daqueles que, aparentemente, atenderam o pedido
feito pelo filme: riam! Dos ex-calouros, quer o patético
não de uma situação específica, mas de suas existências, mostrando a extensão
daqueles personagens fora do auditório, não a performance diante da câmera: a
performance do patético está neles e não apenas estava no programa. Não entremos
em detalhes, mas há até uma competição de gagueira. Vamos rir da mediocridade
dos que um dia tentaram ser celebridades. Não se trata de colocar em questão a
fábrica de inseminação dessa demanda, mas de expor ao ridículo e ao escárnio não
somente o ridículo deles mesmos mas, sobretudo, de ostentar uma forma de revelar
esse ridículo aos nossos olhos por meio de movimentos de câmera e pelos cortes.
Perde-se todo o pudor e todos os valores, mas não se perde o efeito da anedota.
Isso
funciona com a gag com a asa delta numa entrevista, mas a maior parte das
vezes as anedotas não são acidentes e sim procuras da parte da equipe. Os defensores
legitimam o documentário em nome de uma suposta introjeção em seus procedimentos
das próprias estratégias de constrangimento a seus calouros e chacretes por parte
de Chacrinha. Calma lá. Ninguém ia de inocente no programa do Velho Guerreiro,
sabia-se quais eram as regras e falta de regras daquele jogo e, em matéria de
sacanagem, o apresentador era o primeiro a colocar o seu ridículo em cena, seja
por conta de seu figurino, seja por conta de sua atitude cênica. Mas um documentário
não é um programa de auditório – ou não era. E quem aparece falando e sendo filmado
não sabe estar adentrando a uma narrativa cujo objetivo é expor esses participantes
a uma situação de constrangimento, seja como constrangedores ou como constrangidos.
Alô, Alô, Terezinha não se auto-sacaneia como fazia Chacrinha. Não revela
sequer a voz, as perguntas, os caminhos para se chegar aonde se chega. A instância
de narração se apaga em cena e se organiza só na montagem, cujas relações entre
cortes nos deixa claros os valores da malandragem a governar essa organização
visual. Não falemos em contexto histórico, de anos 70-80,
porque essas seriedades são abominadas, ao menos aparentemente, pela atitude de
Alô, Alô, Terezinha. Interessa apenas o diz-que-diz, o reencontro com as
figuras mais exóticas, a palavra de celebridades para mostrar acesso ao poder,
o respeito diante dos com imagem e o deboche com aqueles sem muitos sistemas de
defesa. Dois momentos de exceção: em um, um calouro gongado tem a chance de cantar
seu número inteiro, em montagem paralela com a de Agnaldo Timóteo, competição
apertada, com redenção do calouro injustiçado; em outro momento, Nelson Ned, em
atrito com os realizadores, solicita que parem de filmar. Mais imagens: uma fechada
nele, outra mais aberta, ele sentado no sofá, cachorro ao lado, ele quase menor
que o cachorro. Uma operação de cortes e de relações de quadro para sacaneá-lo.
De novo: por que? Para quê? É para lá de óbvio que as pessoas
humildes, reunidas por sua sede de fama, servem apenas para a gente rir, assim
como Nelson Ned, que mostra estar ali contra o filme. Mas para o filme, pelo que
se vê, são apenas imagens, não seres fora da narrativa. Alô, Alô, Terezinha
não sai jamais do auditório para a vida. Seres humanos podem ser usados ali como
massa de modelar visual em nome de interesses do realizador. Interesses, na verdade,
de sua época. Porque o que se procura, e o que se acha, é o pior do telejornalismo
atual. Só o espetáculo do constrangimento. Tudo é somente imagem? Pode-se tudo?
Essas pessoas não existem fora dali? Lembremos com relativização a frase de Luc
Moullet: “a moral é uma questão de travelling”, e a inversão dela por Godard,
“o travelling é uma questão de moral”. Cada operação tem seu objetivo e
esse objetivo está em questão, sempre, porque a relação com o cinema está moldada
também por seus princípios, não apenas pela competência na execução de suas finalidades.
A legitimação crítica de Alô, Alô, Terezinha é sinal grave de uma derrota
de certos valores. Maio de 2009
editoria@revistacinetica.com.br
|