in loco - 4o cineop
“Você tem que participar do quadro!”
por Rodrigo de Oliveira

Alphaville, de Luiza Campos; e JLG/PG, de Paolo Gregori

Alphaville começa com uma série de imagens tomadas de helicópteros de reportagem que sobrevoam São Paulo enquanto o inferno explode lá embaixo. A banda sonora traz o resumo das tragédias diárias: assassinatos, roubos, chacinas, tumultos, com a exasperação natural dos programas alarmistas. Quando surgem as seqüências do condomínio de luxo que dá nome ao filme, temos não apenas uma antítese imediata, mas verdadeiramente uma idéia de salvação: eis o único espaço onde a paz é possível. Não à toa, uma das primeiras imagens-afirmação vindas do condomínio traz um quadro rigorosamente composto de uma cozinha muito branca e limpa, onde uma menina toma café à mesa com um pote de margarina propositalmente colocado no centro. A associação imediata ao filme homônimo de Jean-Luc Godard atravessa o filme sem muitos critérios além dos óbvios – e não ajuda muito que Alphaville seja o pior filme “importante” de Godard, justamente porque aposta num apocalipse tão alarmista quanto o dos programas da tevê que Luiza Campos emula. Mas a questão aqui é menos de método e diagnósticos do que de postura: a clausura nos condomínios afastados da cidade violenta é de fato o sonho vendido por todos os comerciais de margarina, mas a harmonia completa traz em si um distúrbio primordial, uma sensação plastificada que é própria dessa mercantilização da felicidade, e Luiza Campos se tornará cada vez menos crítica desta fissura quanto mais se colocar pessoalmente como personagem desse comercial.

Algumas das seqüências de Alphaville lembram o pequeno trecho que Christian Saghaard filmara num condomínio parecido em O Fim da Picada, com mãe e filho andando de carro numa rua ensolarada de casas sem muros e crianças brincando na rua, mas a possibilidade do terror por trás dos sorrisos e das promessas de tranqüilidade está descartada aqui. Luiza Campos é mais que uma cineasta observando um fenômeno, e faz questão de participar dele: se muda para o condomínio, passa dois meses lá sem sair uma vez sequer, porque só assim parece ser possível compreender esta vida intramuros. A narração em off da própria diretora, num tom de documentário chapa-branca de canal feminino a cabo (uma infeliz recorrência na programação da 4ª CineOP, aliás), deixa claro que colocar-se no quadro não é participar dos humores, ver por dentro para ver melhor, mas apenas a desculpa perfeita para tomar partido do comercial de margarina e assim, íntima demais dele, ser incapaz de perceber sua inadequação patente. Os personagens deixam de sê-lo, são agora “seus vizinhos” por quem é inevitável não nutrir algum carinho, e com eles Luiza Campos divide a anestesia intelectual (“I have become comfortably numb”).

Uma anestesia que leva a sério a vigilância do circuito interno de vigilância como grande achado estético e pleno de sentidos, mesmo à essa altura do campeonato (e como se abusa desse efeito aqui). E, por outro lado, uma anestesia que torna as seqüências em que Luiza Campos não atua diretamente como personagem em cena as mais potentes do filme. As empregadas domésticas, por exemplo, são presenças constantes e imediatamente contrastantes uma vez que surjam: único traço de peles escuras no meio da brancura geral, roupas simples, cabelos mal-cuidados e, sobretudo, figuras evidente da superfície harmônica que se racha simplesmente pela presença da diferença. Num momento, a filha de uma das empregadas recebe os cuidados da filha mais velha da patroa, e aí não há qualquer interferência da diretora, que apenas as observa. Enquanto a mãe prepara o almoço para os patrões, sua filhinha está sob a guarda voluntária e extremamente afetuosa da pessoa que deveria ser servida e, de acordo com o acordo tácito estabelecido no condomínio, nunca servir a alguém. Ainda em outro momento, vemos uma palestra do chefe da segurança onde, com a imagem de um gráfico de violência projetada na cara, ele pergunta: “O perigo, se ele estiver lá fora, ele nos interessa?”, para ouvir em coro dos moradores que assistem sua explanação um sonoro “não”.

Um dos personagens do filme diz a certa altura que “nossa amiga ali vai vender uma outra imagem do Brasil que não é a favela nem a Amazônia” (ainda que a presença da favela tenha um registro obrigatório numa bonita seqüência através dos muros, onde se pode ver uma comunidade pobre que nasceu exatamente ao lado dessa ilha de riqueza), e não há como escapar da constatação que a maior imagem a ser vendida por Alphaville é a da própria cineasta como atravessadora natural e justa entre dois mundos distantes, magnanimamente reunidos por sua simples presença em cena. E é justamente contra esse caráter conciliador que a primeira pessoa assumiria instantaneamente no cinema que Paolo Gregori se coloca em JLG/PG.

Trata-se, claro, de um outro tom, uma outra estratégia de aproximação: num registro em Super-8 de um passado relativamente distante, Gregori filma a si mesmo numa viagem de 20.000 km em busca de um encontro físico com sua fonte de inspiração e mestre supremo, Jean-Luc Godard. Mais que objetivo, Godard condiciona a estética do filme (os indefectíveis letreiros na tela estão lá, sobretudo o “God Art” repetido por aí quase como um mantra), e eventualmente, a postura deste outro cineasta que o persegue. Participar da cena precisa, necessariamente, significar que também exista a disposição em se deixar marcar por ela, e dificilmente essas marcas serão sempre positivas – estão aí 33, de Kiko Goifman, Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut e toda a obra de CarlosMagno Rodrigues que não me deixam mentir. Mais que isso, é preciso levar a coisa pro “lado pessoal”, no sentido estrito da expressão: a natureza do que se põe à frente e atrás da câmera é irreconciliável, e quando o que está atrás vai à frente, algo dessa fronteira sempre permanece, como resquício, como ruído, como palco para um confronto real de instâncias eqüidistantes. Paolo Gregori finalmente consegue o endereço de Godard e quando tenta convencê-lo a participar de seu filme pelo interfone, recebe do homem uma lição que seu cinema sempre parecia negar: “não é assim que se faz cinema”. Oras, e como se faz? E por que esse velho debilitado que, no plano final, é flagrado à distância andando com alguma dificuldade pela rua, se sente no direito de dar aulas sobre o modus operandi de uma arte que ele, cineasta, domina como poucos, mas que ele, o homem, se nega a realizar diante de um pedido tão afetivo e devotado?

É porque o homem não é o cinema, porque o Godard que aparece fisicamente na tela de Scénario du film Passion, de Lettre à Freddy Buache e Nossa Música não é o mesmo que se filme nestas mesmas cenas, nem o mesmo que atende o interfone. Porque o Paolo Gregori que aparece viajando de trem não é o mesmo que se filma viajando neste mesmo trem, nem o mesmo que escreve uma carta cheia de insultos mesquinhos (e divertidíssimos) a seu mestre-tornado-desafeto. Luiza Campos, de algum modo, conseguiu manter-se íntegra na passagem de um lado a outro, e talvez seja por isso que Alphaville surja tão frágil, tão inabalável. É o risco de se transformar a cena num playground: mesmo as brincadeiras mais aparentemente perigosas, no fundo, não passam de jogos inofensivos.

Julho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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