edição especial curtas brasileiros 2009
Corpos ordinários, corpos aprisionados
por Leonardo Amaral
colaboração especial para a Cinética


Alto Astral, de Gláucia Barbosa e Hugo Pierot (Ceará, 2009)

Eis uma questão do cinema cearense, ou pelo menos do que ficou/vai ficando mais conhecido como “A Nova Cena Cearense”: o rótulo, problema comum que insere, por vezes, em um mesmo pacote todos os filmes. Ou pior: coloca diretores e suas obras em espécies de gavetinhas, nas quais filmes tais entram, outros não. Será que um mesmo Ceará nos oferecem os irmãos Pretti com sua filmografia bastante peculiar no que tange o olhar ao próprio processo cinematográfico; Salomão Santana e o seu uso de imagens de arquivo (Jarro de Peixes) para sua construção narrativa; Ivo Lopes Araújo com uma construção de olhares para (e com) a cidade de Fortaleza (Sábado à Noite e A Amiga Americana – este, com Ricardo Pretti), ou o estranho cotidiano estafante de um Mickey Mouse que precisa ganhar a vida na capital cearense (Espuma e Osso, de Guto Parente e Ticiano Monteiro). Filmes, obviamente, bastante diferentes, seja na estética ou na proposta, mas que encerram uma tentativa de busca, dentro de uma realidade particular (ao mesmo tempo compartilhada por estarem em uma mesma cidade, tendo-a como cenário e personagem), de uma ficcionalização a partir desses olhares.

É aí que um filme como Altro Astral se torna potente, exatamente por partir dessa banalidade da vida para se utilizar do artifício cinematográfico ao construir uma autêntica narrativa. Reside, por exemplo, nesse cotidiano banal, uma assustadora relação com o tempo, que se insere – logo após o corpo encontrado na piscina ser levado para dentro da casa – de maneira tal que, para além do humor negro ocasionado pela situação e pelo estranhamento, o espectador acaba por estar diante de um corpo inerte e por ele não ter um sentimento de preocupação. Frente à situação, rimos sem que saibamos exatamente o porquê do riso; nos afligimos muito mais por estarmos na mesma posição daqueles personagens. Hugo Pierot e Gláucia Barbosa buscam na clássica câmera fixa no tripé, na duração do plano e na imagem em baixa resolução da captação, os artíficios desse filme que nos confina e nos constrange a viver/vivenciar aquele cotidiano modorrento de um fim de semana entre amigos no qual pouco ocorre, e em que o extraordinário é encarado como apenas mais um elemento ordinário.


Em um primeiro enquadramento, um plano de conjunto da piscina, dois rapazes nadam enquanto algumas garotas tomam sol. De fundo, uma música, em intensidade bem baixa, quase inaudível, se comunga a um momento comum de pessoas que nadam ou relaxam ao lado. O cotidiano normal se estende às pessoas na casa a observar o pôr-do-sol e a cidade na janela, ao mergulho dado por um dos indivíduos na piscina.

No entanto, se no primeiro dos quadros, vemos apenas uma parte da piscina, sendo que o rapaz pula em direção ao extracampo, um novo plano e uma elipse nos revela apenas um corpo que bóia, sem grandes explicações. O mesmo corpo é levado para a cozinha e posto ao pé da mesa, enquanto os outros residentes continuam suas ações naquele que parece ser um dia quente e sem grande coisa para se fazer. Praticamente na íntegra, uma canção de Janis Joplin – sua voz aguçada – invade o plano sem, no entanto, mudar qualquer comportamento que seja: ao corpo resta ficar deitado, de barriga para cima. Dele vemos apenas os pés, que, em um dos planos posteriores, continuam a ser apresentados, só que agora, sobre um sofá de alvenaria.

A presença do corpo é sempre uma questão dúbia: ao mesmo tempo em que é latente a sua fisicalidade no espaço, o corpo, em Altro Astral, é sempre um elemento tensor exatamente por sua não-notoriedade. Se, pela profundidade de campo difusa da câmera digital podemos perceber seus rastros pixelados ao fundo, nada impede que, na rede, em primeiro plano, um casal termine de transar e volte a tomar a latinha de cerveja que dividiam ali. O corpo, estirado no chão, é tão desimportante quanto a fala da moça que explica as regras de um jogo de tabuleiro para os outros jogadores, há uma equivalência das ações nesse momento, do discurso vazio de quem fala, da imobilidade de quem já é apenas um morto (ou melhor, um corpo sem vida), e desse tempo que apenas insiste em durar.

Os diretores fazem de Alto Astral um conformador de tudo e todos em coisas: tudo não vai além do vazio do qual são parte, e que ajudam a construir. Os personagens ali são levados à categoria da não-representação, são postos em um estado primário, não passam de meros corpos que apenas restam no campo visual, sem, necessariamente, impregná-lo ou nele se fazerem notórios. São todos meros corpos a serviço daquele tempo e espaço diegéticos, ao passo que a não-mobilidade de um pouco se difere das outras ações que acontecem na piscina, na cozinha, na mesa, na rede. Alto Astral leva suas propostas, e sabe conduzi-las, até as últimas consequências. Sim, um filme sem medo das apostas: ao final, o que resta é o corpo em cujo dorso repousa um celular que começa a tocar: a tela preta e a continuação do toque são uma das poucas certezas: o de que as coisas continuam aprisionadas naquela mesma atmosfera.

Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br

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