Amanhã Nunca Mais,de Tadeu Jungle (Brasil, 2011)
por Andrea Ormond

Engarrafado

A referência parece óbvia: 1985, Martin Scorsese, After Hours. No entanto, a comparação necessita de cuidados. Se o programador de computadores Paul Hackett era antes de tudo um egoísta arrogante, Walter, o médico anestesista vivido por Lázaro Ramos em Amanhã Nunca Mais, perde-se graças à excessiva gentileza e passividade. O norte-americano era o retrato de uma sociedade que nos anos 80 abraçava a ideologia competitiva, levada aos limites; o brasileiro guarda resquícios do homem cordial, embora imprensado na selva urbana de São Paulo, onde Paul Hackett sentir-se-ia bem à vontade.

Críticos apressados vão logo dizer que São Paulo é “personagem incidental” do filme. Esqueçamos esta bobagem. Walter poderia estar no Rio, preso no Túnel Zuzu Angel, que não faria a mínima diferença. Alguns, dirão até que ele é vítima de racismo. Mas seu dilema é universal, franca encruzilhada de uma existência inútil, vivida somente para servir aos outros, sem que os outros percebam. Claro que, em se tratando do cinema brasileiro de 2011, tudo é demonstrado com um didatismo obsceno e irritante. A praia no feriado, a sogra obesa, a rotina do hospital, o sexo adiado com a esposa. Eis que não precisamos nos esforçar minimamente para entender que Walter é um fracassado. E o fracasso da vida real muitas vezes não é tão óbvio assim, o que torna o personagem uma caricatura.

Retornando à matriz, em After Hours o protagonista tem uma longa caminhada até que compreendamos sua real natureza. Ou seja, mesmo na inspiração (ou cópia) ululante, Amanhã Nunca Mais recria-se em similar ligeiro, mal ajambrado. O que a história tem de melhor foge ao estereótipo de Walter. É o trânsito. Sim, o trânsito, que sufoca os habitantes das grandes cidades brasileiras e que provoca aqui uma espécie de “angústia alheia”, tamanha a veracidade da impotência de vencê-lo, para dar curso à vida. Walter e os outros podem até ser unidimensionais em excesso, mas a paranoia do trânsito (e a relação estúpida dos urbanóides com seus carros) é complexa o suficiente para gastar a atenção. Ninguém caminha duas quadras que seja, ninguém pega metrô ou ônibus; digladiar-se em avenidas e viadutos fabrica ilusão de potência. Não à toa, o cirurgião ordena que Walter estacione melhor o seu tesouro: ele é a base dessa escala de valores alucinada.

Outro ponto original no inferno do anestesista é o sexo. Trata-se de um homem castrado, sem pênis, devotado à esposa. O amigo (Milhem Cortaz), quando sugere uma rotina sexual ativa, fálica, discursa sobre a gratidão das mulheres gordas e o inusitado de um coito com idosas. Fica a impressão de que o amigo também já esgotou o repertório natural do tesão masculino e busca sensações diferentes. Quem sabe os duelos no trânsito, os homicídios motorizados, não guardem ligação íntima com esse esgotamento coletivo da libido, com essa falência em relação ao prazer saudável e ordinário?

Podemos limpar a barra de Amanhã Nunca Mais a partir de tais aspectos: o que ele traz de instigante, muito além da trajetória bovina do médico, é o olhar seguro para idiossincrasias, rituais moderninhos desprovidos de qualquer sentido. Para piorar, antes da catarse final, o protagonista não almeja qualquer salvação. É angustiado, mas conforma-se; é um banana, mas obediente. Força-se um espelho com o espectador, quase inevitável. O bolo de aniversário da filha é o patrão nosso de cada dia. A liberdade vale mais do que o pão, já dizia Nelson Rodrigues, sob a pecha de “reacionário”. Um fim “ista” – niilista, maoista, ou coisa que valha – acrescentaria as doses de inteligência que faltam ao quadro. Mas seria pedir muito, no deserto tatibitati e conform(ista) da cultura previsível e conservadora que rege o nosso cinema.

Novembro de 2011

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