Amantes Constantes (Les amants réguliers),
de Philippe Garrel (França, 2005)
por Francis Vogner dos Reis

Nós que amávamos tanto a revolução

Indagado certa vez sobre o quanto a sua obra havia mudado, Caetano Veloso respondeu que suas preocupações sempre foram, e ainda são, as mesmas: ele ainda cantava o amor e a liberdade. Quem conhece a obra de Caetano sabe que ela mudou, mas não seus princípios norteadores, no caso, como ele mesmo diz, o amor e a liberdade. E certamente são eles que movimentaram as revoluções estéticas e comportamentais mais estimulantes (só pra citar duas das mais relevantes, o tropicalismo e a nouvelle vague). Ambas mudaram a música e o cinema? Sim, mas não instituíram uma nova ordem, até mesmo porque o “amor e a liberdade” (que podemos dizer, são temas ainda recorrentes em Godard também) não carecem de legitimação.

É isso o que faz a diferença entre um filme como Amantes Constantes, de Philippe Garrel e Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci – ambos filmes que, além de ter o ator Louis Garrel, olham para maio de 1968. O filme de Philippe Garrel (pai de Louis) se preocupa em apreender a experiência daquele tempo e entender o momento seguinte, as implicações da vida, do amor e da política (os três juntos) depois da exasperante intensidade libertária das barricadas de Paris. O de Bertolucci tenta fazer um inventário do que foi maio de 1968, mas tendo-o como uma experiência inversa do que o imaginário coletivo supõe, uma desmistificação moralista do ponto de vista do “fim da história”, uma instituição da decadência como maneira de expurgar o que considera fracasso. É verdade que a concepção que Bertolucci tem da história sempre pareceu um pouco problemática, mesmo em sua obra-prima Antes da Revolução, que apesar da vitalidade, já tinha aquela pontinha do gosto italiano pela decadência.

Mas Amantes Constantes é muito mais do que uma antítese de Os Sonhadores. Talvez o mais belo filme do ano, trilha um caminho diferente de muitos dos filmes contemporâneos que se voltam ao passado pra falar de um episódio político. Mas, para começo de conversa, convém apresentar o ilustre desconhecido: o diretor Philippe Garrel filmou quase trinta filmes, entre curtas e longas-metragens, desde 1964. Ele é considerado um dos principais cineastas franceses pós-nouvelle vague ao lado de André Techiné, Maurice Pialat e Chris Marker. No entanto, nunca teve um filme seu no circuito comercial brasileiro. Por que? Só Deus sabe. Este seu mais recente filme, Amantes Constantes, é a estréia oficial do cineasta no Brasil. Quem não viu seus filmes no exterior (ou não baixou na Internet) não tem muitos termos de comparação entre este seu último trabalho e os anteriores. De qualquer maneira Amantes Constantes dá conta do prejuízo.

Nele, Garrel fala de amor e liberdade, temas de sempre, e aqui (em maio de 68 em Paris) é onde se encontram. Amantes Constantes une 1968 e 1969. A excitação e o cansaço. O dia e a noite. O branco e o preto. O amor e a liberdade. François e Lilie. Não se furta em se interessar por tudo, pela experiência integral dos personagens, por uma aproximação radical, cintilante, como se não estivesse falando daquele momento a partir de uma postura de relato do passado (por isso mesmo, já consumado). O cineasta pede imersão total, jogando o espectador no olho do furação da excitação revolucionária de François e dos outros jovens da Paris de 68.

Para François a revolução, é antes de tudo, fome de beleza, mais do que a fome de pão, e para seu amigo Jean-Christophe, o revolucionário que acredita na ação, não na beleza, a luta é para sanar a fome de pão – como no início do filme, quando, em uma reunião de militantes, François fala da necessidade de publicar seus poemas e Jean-Christophe em ser pintor não de telas, mas de paredes, que por sua função prática e objetiva considera ser “a verdadeira pintura”. Ele é movimentado por uma razão pragmática, enquanto Louis, alter ego do diretor, é motivado pela beleza. Desse modo, a lógica do cineasta como “pintor”, como quer Philippe Garrel, é muito mais do que ser pintor de paredes (pra usar a comparação do filme): para o diretor, o preto e branco tem uma função maior que localizar aquela história no passado ou fazer disso artifício de busca de realismo (ou na contra-mão, de mero lirismo), mas convém transformar o preto e branco em formas puras, fazendo delas quase um trabalho abstrato.

O preto e o branco são as tintas de Garrel, tanto que é impossível pensar o filme de outra forma. E é assim que Garrel “pinta” Amantes Constantes: tudo é experiência estética. François vê Lilie a primeira vez nas barricadas, a segunda na casa de Antoine, o amigo burguês, quando decide falar com ela. Ai começa uma paixão que, mais do que mediada pelo desejo de revolução pessoal e coletiva, existe em estado puro. Da escultura (Lilie) e da poesia (François) a experiência estética passa a ser a da paixão.

Há uma coisa em Amantes Constantes que perpassa todo o filme e certamente é a questão central, tanto da arte, como da revolução, quanto do amor (que são os eixos aqui): a necessidade e a impossibilidade da permanência. O espírito de 68 ainda está em 69, mas muito mais do que uma mudança definitiva, 69 acena para uma mudança constante. Assim como o ano de 68, tudo acaba – resta saber então qual herança fica, ou mesmo se ela fica. Godard já falou que filmar é observar mutações, e nada responde tão bem a Amantes Constantes quanto essa afirmativa. Lilie e François são amantes que, em princípio, não se preocupam com o amanhã, já que a experiência é fruto unicamente do instante, não da memória, e não visa futuro. Mas o amanhã é inevitável. A pergunta de Garrel que fica é justamente a questão divisora de águas do filme na música dos Kinks (da virada de 1968 pra 1969) que diz “This Time Tomorrow, where will we be?”.


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