edição especial curtas brasileiros
2009 Brevíssimo comentário sobre caminhos
do cinema a partir de dois filmes queridos por
Felipe Bragança
A
Amiga Americana, de Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti (Ceará, 2009) As
Sombras, de Juliana Rojas e Marco Dutra (São Paulo, 2009)
1.
A
Amiga Americana é, antes de um filme completo, uma instalação de cinema. Ivo
Lopes e Ricardo Pretti brincam de encenar e de imitar a encenação, em um sentido
de contemplação nunca confundida com esvaziamento de sentido. A calma alegria
com que filmam não esconde o ferino senso de humor que vai da escolha do tema/personagem
ao jogo entre os diálogos decorados e improvisados, entre cenas fakes de
narrativa e livres tomadas de afeto. Mas, ao contrário do que se poderia esperar
de cineastas menos apurados, esse partir da situação clichê da visita de uma turista
anote-americana à Fortaleza não leva o filme a um lugar do pastiche ou do deboche.
Ao contrário: a frontalidade do cinema da dupla é a frontalidade da delicadeza
e da generosidade com que encenam e olham a fragilidade romântica do lugar do
visitante, da liberdade aventureira que transita pelo filme como uma brisa boa
de levar para casa. Este cinema mais próximo da rede de dormir
do que da locomotiva, se dá em uma narrativa costurada pela pregnância de pequenos
momentos-chave quase autônomos, como em um estado entre a vigília e o descanso,
entre a observação e a anedota de eventos. Montado com essa lógica de brisa frouxa,
A Amiga Americana faz do feel good não um fim moral, mas um elemento
transgressor onde não há cotidiano desdramatizado, mas sim uma banalidade espantosamente
encantadora ou encantada pela mínima encenação dos gestos. O que parece importar
aqui, sem pompa ou grandes efeitos, é o instante da imagem como forma de prazer
e liberdade além do drama. Esse traço – presente nos filmes
mais recentes de Ivo (o episódio de Praia do Futuro e o longa Sábado
à Noite) e nas investigações de Ricardo com seu irmão, Luiz – conecta esse
cinema a alguns traços de cinema contemporâneo que vão de Malick a Naomi Kawase,
passando pelos videos pessoais de youtube e outras formas de expressão caseira
ou familiar da web. Um cinema que convida a outra respiração, que se deixa levar
por aquilo de que gosta e que se deixa gostar pela deriva – mas que faz disso
uma forma de prazer e de graça, não de ausência de sentido ou vontade de meta-narrativa. É
na liberdade simples de seus planos que este pequenino curta construi a sua rara
facilidade de mesclar narrativa e fruição de imagens. Seja na caminhada final
da amiga americana pela praia (em romântica fusão), seja na passagem musical sobre
o telhado da casa – o que se vê é um cinema que investiga com rara inteligência,
a capacidade da imagem contemporânea de passar e permanecer. 2.
Juliana
Rojas e Marco Dutra têm o dom de acumular estranhamentos delicados em seus filmes,
parecendo estar seguindo uma cartilha particular muito precisa na forma como mastigam
e digerem aspectos e resquícios do cinema clássico de terror, suspense e melodrama.
As Sombras bebe tanto no cinema de suspense psicológico de Walter Hugo
Khoury (diretamente homenageado pelos cineastas) quanto nos remete à sensualidade
fantasmagórica de cineastas contemporâneos como o Apichatpong de Mal dos Trópicos.
Como um estudo sobre a filmagem de fantasmas, As Sombras é um sinal de
um cinema que se aproxima do gênero não para descontruí-lo, mas para de alguma
forma encontrar nele o que há de mais essencial, básico, limítrofe entre o abismo
da liberdade da imagem e as normas de sua linguagem e tradição. Com
uma brilhante fotografia digital ampliada para o scope e uma montagem de
encadeamento hipnotizante, o filme abre espaço para a beleza daquelas que são
as musas, as deusas, ou as divas desse cinema de espanto sedutor: as figuras femininas
desamparadas e/ou desesperadas que perambulam por situações inusitadas e limítrofes
– presentes em quase todos os seus curtas e foco também do longa-metragem em desenvolvimento.
Desde os primeiros filmes, a dupla se dedica a esses pequenos ensaios sensoriais
sobre narrativas clássicas femininas – o que tem dado a eles também a oportunidade
de explorar a potência dramática de grandes atrizes e de se aventurar no limite
entre o realismo cotidiano e a encenação levemente excessiva dos gestos, como
poucos hoje no cinema brasileiro e latino-americano. Há sempre algo de ligeiramente
mecânico e coreográfico na forma como seus atores se movem e esse lugar “quase
máquina” é que faz de seus personagens não atores imitando pessoas, mas atores
expressando os elementos fantasmagóricos de um cinema que se faz com pequeninas
engrenagens visuais para o espanto (Shyamalan, Hitchcock) em que o corpo agente
é peça fundamental. Talvez, por fim, seja este o traço mais
bonito do cinema da dupla e diretamente tratado aqui em As Sombras: esta
mistura de espanto sedutor e atmosférico, com uma capacidade de nos levar pelas
mãos em trilhas narrativas maquiavelicamente urdidas, costuradas, arquitetadas
para confundir. A elegância com que eles operam essa bipolaridade é obra rara
de uma dupla de obsessivos observadores do cinema e daquilo que ele pode fazer. 3.
O
motivo da justaposição dos curtos textos sobre estes filmes é, claro, propor um
diálogo para além dos diagnósticos autorais: é que, em algum lugar no entremeio
desses dois filmes, me parece estar o que há de mais forte para se ver (ou procurar
se ver…) no cinema hoje. Em algum fotograma entre a maquinação pós-gênero da penumbra
paulistana, e a fruição alegre e debochada da luz de Fortaleza; entre as sombras
dos gêneros perdidos e a brisa ignorante daquele sol cheio de areia e sem drama;
entre a noite americana ultra-planejada e desenhada em As Sombras e a desinteressada
fotografia em DV sob o sol forte de A Amiga Americana, está a utopia da
imagem que alimenta os impulsos de quem filma hoje o cinema que me interessa ver.
A justaposição é, portanto, um artifício tão orquestrado quanto passional de elogiar
não apenas estes filmes, mas os filmes por-vir desses meandros. Peço desculpas,
inclusive, aos realizadores por escrever sobre seus filmes para poder chegar a
Outro. Um Outro que não vejo ainda ali – mas que persiste nesse encontro imaginário
aqui proposto e sugerido. Nesse feitiço de sol e lua extremamente prazeroso de
duas duplas talentosas que podem até parecer atirar em alvos diferentes e distantes…
mas que continuarão andando juntas, nas entrelinhas de meus delírios. Janeiro
de 2010 editoria@revistacinetica.com.br
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