Amor a Toda Prova (Crazy, Stupid, Love),
de Glenn Ficarra e John Requa (EUA, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

Trocando os sapatos

As primeiras imagens de Amor a Toda Prova formam um retalho de travellings exibindo os pés de casais anônimos num restaurante. Estão todos calçando sapatos chiques, tinindo, e calças novas nas justas medidas. Roçam-se sob o embalo da trilha romântica “Save Room”, de John Legend. Finalmente, a câmera pousa nos pés afastados de Cal Weaver (Steve Carrell) e Emily (Julianne Moore). Ele usa um par de tênis velhos e uma calça cargo. Somente pela caracterização de suas roupas, ou pela forma como se posicionam os pés, já nos é demonstrado o estágio do relacionamento daquele casal – algo estabilizado, desgastado, desapaixonado – em contraposição aos demais casais em seus primeiros encontros. A câmera se eleva para a parte de cima da mesa, e seus rostos se tornam visíveis. Numa conversa casual sobre o que escolher para o jantar, acontece aquilo que somente pela relação metafórica inicial já ficara demasiadamente previsível: ela pede o divórcio.

Durante sua solteirice, Cal conhece Jacob (Ryan Gosling), um galã sedutor que promete ajudá-lo a reencontrar sua masculinidade. O primeiro gesto dos ensinamentos de Jacob é arrancar-lhe os tênis velhos, trocar seus trajes e torná-lo visivelmente mais atraente. Mas quando este processo de transformação está completo, e Cal se tornou um sedutor solteiro, ele reencontra seu filho (Jonah Bobo) e se diz um homem diferente. O menino lhe responde imediatamente que ele não mudou. Que é o mesmo homem, “apenas com roupas novas”, e que deve ainda lutar pelo amor de sua ex-mulher. O segundo longa-metragem de Glenn Ficara e John Requa opera continuamente por estes mecanismos metafóricos, e um deles tem primazia: a roupa. Amor a Toda Prova é um filme que toma como gatilho a forma externa desgastada (sob a figura da roupa) e sua necessidade de reatualização, de revigoramento, sob o sempre iminente perigo de um término fatal. Por outro lado, a transformação é externa, e o objeto de sua causa é sempre um e o mesmo: a continuidade do amor. Em certo sentido, há uma modernização da forma, mas uma manutenção do conteúdo do gênero.

Ora, esta afirmação tem seus reflexos estéticos de forma clara e até voluntariamente inocente. Trabalha-se o quadro e a narrativa adotando um certo histrionismo em sua elocução – planos-sequências com saltos temporais internos, estilizações dos cenários, slow motions que indicam a temporalização subjetiva de seus personagens, atuações exageradamente caricaturais, retalhos e montagens velozes ao som de trilhas pop – a própria trama se contorce numa constante troca de papéis dos personagens, com voltas e reviravoltas, expandindo-se como um espiral cada vez maior até um ponto de exaustão em que parece não haver conclusão ao grande calhamaço de problemas que foram criados. Mas, ao mesmo tempo, Amor a Toda Prova segue rigorosamente todos os cacoetes de seu gênero: das piadas e situações mais ordináriasà função desempenhada pelos personagens na trama. Apesar das guinadas tortuosas, da confusão de papéis na narrativa e dos paralelismos infindos que cria, sua teleologia nos leva novamente à afirmação plena do amor.

E junto à afirmação plena deste amor está justamente a afirmação plena das convenções de um gênero. Assim, o filme de Ficarra e Requa se situa no limiar entre as inovações de alguns procedimentos estéticos e a procura de uma potência poética até nos clichês mais antiquados. É o paradoxo do poder sedutor de Jacob: veste roupas da moda e investe nas mulheres com atitudes sofisticadas, mas o seu big move para levá-las para a cama é um passo de balé piegas e, ao mesmo tempo, o único irresistível. Afirma-se por um lado justamente a inovação da forma, necessária ao conservadorismo do conteúdo. Afirma-se, por outro, a força de um clichê, sua potência permanente mesmo às transformações exteriores. Amor a Toda Prova é em algo produto da conciliação destes embates, uma conciliação que apazigua a violência da extremidade de ambos os polos em busca de uma síntese satisfatória que faça com que todo o cinema do gênero, no que ele pode ter de mais antiquado, ainda tenha sentido.

As maiores qualidades e os maiores defeitos de Amor a Toda Prova são resultados deste mesmo contraste. O drama do casal perde força pois a predestinação daquele amor é tão pujante que não conseguimos acreditar mesmo na ruptura daquela separação: está claro desde o início que tudo não passa de uma grande confusão de papéis/funções na trama que será, mais adiante, resolvida. E quando é resolvida, reencontramos aqueles valores da família e do amor embutidos na gênese do gênero, valores dos quais jamais realmente nos distanciamos. O conflito que move a trama é um ameno demais para em algum momento realmente duvidarmos de seu desenrolar. Ao final, termina à sua maneira engendrando um discurso contra o desencanto, sendo que, no duro, na duração do filme, nunca nos desencantamos com o amor realmente.

Mas mesmo que Amor a Toda Prova termine como uma conciliação de algo que aparentemente nunca se rompeu, o que ainda o torna um filme agradável de se assistir é a esperteza com que encontra a potência das convenções e a maneira que procede em sua atualização. Herda, por exemplo, a autocomiseração dos personagens principais da trupe de Judd Apatow, humilhando-os a um nível inacreditável. Herda também as piadas grotescas e politicamente incorretas dos irmãos Farrelly. Consegue criar uma relação de reciprocidade e simbiose entre Cal e Jacob semelhante ao dos dramas de Patrice Leconte, onde o sedutor quer ser como o marido estável e vice-versa. O filme se utiliza perfeitamente de todos os clichês e consegue, com os mesmos truques antigos que já conhecemos, ainda, e de uma forma muito sincera, nos emocionar com absoluta convicção – mesmo que ela venha se impor em relação a uma dúvida que sequer chegamos a ter.

Março de 2012

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