sessão cinética
Anjos
de Cara Suja (Angels With Dirty Faces),
de Michael Curtiz (EUA, 1938)
por Juliano Gomes
Publique-se
a lenda
Anjos da Cara Suja
é armado, desde o início, como um filme sociológico. Seus personagens
são partes de um organismo coletivo, onde cada um tem uma função
específica em relação a esta dimensão do comum. As duas grandes
panorâmicas que pontuam o início e o meio do filme reiteram este
interesse pelo grupo. A câmera para nos dois rapazes, mas poderia
ter parado em qualquer um naquela multidão. Eles interessam ao
filme na medida em que são “representativos” de uma questão que
vai colocar em jogo a harmonia daquele meio. Trata-se de uma parábola
onde o que está em questão é o lugar da virtude e sua perpetuação.
A imprensa é uma espécie de coro no filme, é a voz despersonalizada
deste grupo. É ela que comunica diretamente as preocupações e
anseios desse coletivo, e não nos deixa esquecer esta dimensão
que engloba todos os personagens. Trata-se aqui de uma relação
entre as ações individuais e suas conseqüências para a polis.
Entretanto, estamos no século XX, na América urbana
pós-Depressão, onde a representação do bem coletivo, o Estado
e seus ideais, estão profundamente abalados. O suposto apreço
pelo bem comum levou o país ruína. É nessa época de profunda descrença
na Justiça que se consolida um dos grandes personagens da mitologia
americana: o gângster. Na medida em que o Estado, as leis e as
normas perdiam força junto ao povo, o gângster se torna o símbolo
de uma liberdade individual perdida, daquele que segue seus próprios
valores e sua própria ética, como os justiceiros do velho oeste.
Essa figura foi solidificada por uma série de filmes de muito
sucesso nos anos 1930 como Scarface (Howard Hawks, 1932),
Inimigo Público (William Wellman, 1930) e O Pequeno
César (Mervyn Leroy, 1931).
Em
1934, este gênero de filmes tomou um duro golpe com o estabelecimento
do Código Hays para a produção cinematográfica. Essa pré-censura
proibia que protagonistas fossem “maus exemplos” de conduta moral
e que praticassem atos de violência e contra a lei, além de uma
série de outros limites de natureza moralizante, que praticamente
inviabilizavam a sobrevivência do filme de gângster da maneira
como havia se estabelecido até então. Era preciso cultuar a virtude
em nome do bem comum, dos valores comunitários. Michael Curtiz
coloca justamente este dilema em cena, especialmente na figura
do Padre Connollt (Pat O’Brien), que contrasta e complementa James
Cagney (que cria aqui um dos bandidos mais carismáticos de todo
o cinema). A presença de Rocky afeta a tudo e a todos, seduz e
corrompe. Os pivetes chamados dead-end kids, que o padre
Connolly tenta a todo custo levar para o caminho do bem, o amam
e o veneram (e é neles que reside a possibilidade de “regeneração”
da sociedade a partir do “bom exemplo”). A mocinha do filme (Ann
Sheridan), que é viúva de um outro criminoso, se deixa seduzir
rapidamente por ele, apesar desse romance não se consumar, pois
esta relação não ressoa na esfera coletiva.
O centro da questão é a restauração dos valores
do bem comum, o que só é possível pelas novas gerações representadas
pelos dead-end kids. É neles que a história dos dois protagonistas
se repete (comparação que a decupagem reitera repetindo os mesmos
planos do início do filme). Eles carregam esta esperança da regeneração,
encarnam uma “segunda chance”. O magnetismo corrosivo de Rocky
ameaça este futuro harmônico. Ele é o desviante, o que desorganiza
as partes e o sentimento de conjunto. É ele quem desperta as paixões,
que é sua encarnação, que está sempre entre a luz e a sombra e
não pode ser apreendido. Mas a questão para Jerry Connolly é com
a posteridade, é com a manchete, e não mais com a presença imediata
de Rocky. Ele entende o funcionamento desta nova sociedade, urbana,
industrial, da qual o cinema é a maior consubstanciação. O que
fica do personagem é a sua imagem, é a manchete, o que está escrito.
Seu pedido final é esse. Ele não pede que Rocky abdique dos seus
ideais, mas sim de sua imagem, de seu poder de influência, e de
sua transformação em mártir como fora-da-lei exemplar. Apesar
de conseguir a manchete que deseja, que alimenta a esperança e
a virtude da comunidade, Curtiz faz questão de nos lembrar que
toda imagem é feita de sombras.
Maio de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|