Anjos do Sol, de Rudi Lagemann
(Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo
Ilustração de pesquisa
Um texto publicado em um portal da Internet define
Anjos do Sol como o mais “polêmico” dos concorrentes de
Gramado 2006. Não há nesse texto nenhuma indicação de qual seria
a razão da polêmica. Para se polemizar, é preciso haver discordância,
princípios em choque, tensões de pontos de vistas. Presume-se
então que, ao organizar uma maneira de tratar a prostituição infantil
de sua protagonista e do contexto por onde ela transita, o filme
possa divergir de seus espectadores. Mas onde estaria essa divergência?
Esse detalhe porque é bastante sintomático da nossa contemporaneidade
no Brasil, onde o uso de certas palavras, pela imprensa ou na
Internet, carregam sentidos-clichês para legitimar culturalmente
esse ou aquele produto. No caso de Anjos do Sol, portanto,
seria seu potencial polêmico.
A utilização do termo “polêmico”, no texto em
questão, é sinal de algo maior. Ele está certamente se referindo
menos à forma do enfoque sobre a prostituição infantil, e mais
à própria decisão de abordar essa situação social. Ou seja, a
polêmica estaria na eleição do tema, na disposição de tratá-lo
em imagens, de apontar a câmera para uma enfermidade brasileira.
A pessoa responsável pela redação do texto, assim, deixa a entender
que o cinema brasileiro atual, em linhas gerais, estabeleceu um
padrão de amistosidade com o país. Não tenho a disposição, nesse
texto específico, de entrar por esse caminho. Mas talvez a forma
mais palpável de Anjos do Sol estabelecer-se como “produto
cultural”, fixar-se como filme necessário e importante, seja mesmo
pela amostragem encenada de uma realidade imediata, pela sua conexão
com o agora, pelo seu empenho em ficcionalizar um dado da sociedade
brasileira.
De qualquer forma, o que há, na essência dessa
lógica, é a valorização do conteúdo (nunca destituído de humanismo),
em detrimento da forma, que seria irrelevante em um filme com
essa eleição temática. O cinema assim se legitima, antes ou a
despeito de qualquer opção estética, pela conexão com a realidade.
Não temos nenhuma dúvida sobre a importância do cinema como intermediário
entre os realizadores, a realidade e os espectadores – e acredito
estar falando pelos editores e por muitos colaboradores de Cinética.
No entanto, o cinema não é, ontologicamente, espelho ou reflexo
do país. Para se chegar a isso, tem de apoiar-se em um “sistema”.
Nenhum significado específico ou síntese social surge apenas porque
a câmera está ligada. É necessário fazer uma série de opções e
conjugações para se obter efeitos e sentidos.
Porém, o que se percebe na reação a filmes com
compromisso social, como é o caso de Anjos do Sol, é uma
tendência geral de, por respeito ao sofrimento dos personagens
e pela reivindicação de solidariedade, ignorar o sistema estético-dramático.
É a realidade que valora o filme. Embora tenha esse facilitador
em sua busca de legitimação crítica e cultural, o filme, não sem
solavancos (nas opções de mise-en-scéne, com excessos diluidores
de cinemanovismos), tenta sair da armadilha de ser somente uma
ilustração da realidade. Tenta, apenas. Na ilustração de sua longa
e ampla pesquisa, há pouca autonomia da ficção. Anjos do Sol
não esconde sua disposição de nos ensinar algo sobre o Brasil.
Sua existência está pautada por esse caráter pedagógico.
O filme acompanha a jornada de uma prostituta
mirim da Bahia, que, vendida pelo pai para um comerciante de “corpos
na puberdade”, vai ser escrava mal remunerada nos confins da Amazônia
– de onde, por conta da selva e de seu explorador, fugir é um
atalho para a morte. A experiência individual abre a janela para
um contexto mais amplo – sobre a prostituição infantil – e dá
a impressão de ser objeto de uma denúncia. Mas, contra quem? As
forças opressoras são várias em Anjos do Sol, da pobreza
à ganância. Mas o mais importante, para o filme é ser solidário
ao sofrimento da protagonista, sem apontar o dedo acusador para
esse ou aquele culpado. Mais que filme-denúncia, portanto, é um
filme-compaixão. E isso nada tem a ver, necessariamente, com uma
proposta sentimentalista. Há até alguma sobriedade na representação
do sofrimento.
O
arejamento da proposta é obtido por momentos de interpretação.
Até mesmo a novata Fernanda Carvalho, escolhida, segundo a divulgação
do filme, entre 760 candidatas, vive situações de espontaneidade.
Já Antonio Calloni, fiel a seu estilo “show”, é caso mais complexo.
Se sua performance como cafetão atenua a vilania do personagem,
aproximando-nos dele pelo humor e pelo carisma, mesmo nas seqüências
mais definidoras de sua identidade negativa, essa presença performática
é também um atenuante para as situações. Calloni está sempre no
registro do espetáculo, do ladrão de cena, da atuação monólogo,
como comento em texto específico sobre o ator, na seção Olhares.
A crueldade fica mais palatável com ele em cena.
O mesmo efeito de amortecimento percebo na escolha
de não se mostrar a protagonista ou outras prostitutas na hora
do programa sexual. A câmera fica do lado de fora do quarto, com
pudor, com receio de não encontrar a dramaticidade correta, de
expor os corpos das atrizes, ou de colocá-las em uma situação
constrangedora. Mas que prostituição é essa sem sexo, sem alguma
informação cênica-visual sobre a degradação delas? Vai haver sempre
quem defenda o poder de sugestão de uma não-imagem. Mas há casos
(como esse aqui), em que sugerir é pouco, se a idéia é compartilhar
sofrimento. Vemos apenas elipses com imagens de cliente entrando
e saindo do quarto, o que, para o filme, é uma redução do drama
individual à informação estatística – quase apenas uma ilustração
de seu trabalho de campo.
Nos créditos iniciais de Anjos do Sol,
causa surpresa ver os nomes da Globo Filmes e de Daniel Filho
como associados do projeto. Afinal, no filme vemos imagens sem
o padrão “Globo Filmes” a que nos acostumamos: em geral asséptica,
teatralizada ou conservadora. As imagens de Anjos do Sol,
não sem a ambição de propor uma caligrafia de câmera imediatamente
associada ao Cinema Novo, são quase toscas. O filme, aliás, em
algumas passagens tem uma relação excessivamente mimética com
o passado cinemanovista, e contribui para esse vínculo histórico
um recorte temático parente de Iracema, de Jorge Bodanski
e Orlando Senna – embora sem o mesmo efeito da convivência entre
câmera, atores profissionais, intérpretes amadores e espaços reais.
Se, naquela experiência dos anos 70, ainda hoje desestabilizadora,
rompia-se com a fronteira entre a representação e o representado
(pessoas ou lugares), Anjos do Sol não carrega em suas
situações aquela selvageria do contato entre a câmera e a realidade.
Pode até ser “tosco” para o padrão estético da GF, mas ainda assim
procura estar dentro nos trilhos, atrelado a certas convenções
narrativas e certas soluções domesticadas (valorização da ação
sobre o tempo, da elipse sobre a permanência). Nada muito polêmico,
portanto.
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