sessão cinética
Aos Nossos Amores (À nos amours)
de Maurice Pialat (França, 1982)

por Juliano Gomes

A forma do mistério

Aos nossos Amores é um filme sobre a instabilidade. Não exatamente “sobre” este assunto, como se esse fosse seu “conteúdo”, mas principalmente “sobre” no sentido de estar “em cima de”: sua base é essa, movediça, onde tudo pode mudar, desaparecer, ou ser tragado a qualquer segundo. Nada aqui parece ser capturável, fixado em alguma categoria, segmento, ou sentido que possa conter o grande fluxo de energia que transcorre em seus pouco mais de noventa minutos. Pialat aceita os mistérios da magnífica Sandrine Bonnaire (numa das mais notáveis performances de estréia da historia do cinema), e aposta na sua força, na sua presença. Somos guiados como por uma bússola, e nosso olhar a segue aonde quer que ela vá. A narrativa se entrega a Suzanne e todas as suas variações e movimentos.

É somente a isso que o filme se prende. E a adolescência da protagonista e seus amigos é esta idade – este estado “sem lugar” – do desajuste, da chegada da sexualidade, onde não somos nem adultos nem crianças, onde o corpo parece começar a ter vida própria e a ebulição dos hormônios toma a dianteira em detrimento da racionalidade. O olhar aqui assume como que uma postura adolescente, tendo a protagonista não somente como principal ponto de tração dentro do quadro, mas como ponto de vista, como forma de ver e de se relacionar com aquilo que vê. Podemos, a qualquer momento, nos apaixonar e, em seguida, abandonar o que estamos vendo. Importa somente o momento da existência dela na tela – como ela está enquanto a vemos - e de todos os personagens que orbitam à sua volta, com o magnetismo que reside em cada piscar de olhos ou suspiro, que nos dá a impressão de estar vivendo tudo aquilo pela primeira vez. Todo plano parece o primeiro take. É somente da acumulação deles que o filme se forma.

Essa soma de instantes é acompanhada de uma intensa impressão de subtrações. O filme parece ter sido montado linearmente, contando todo o trajeto daqueles personagens, e em seguida violentado, rasgado, destruído, tomado por algum tipo de fúria ou combustão, da qual só ficamos com as fagulhas que sobraram. Toda noção correta de ritmo, decupagem, progressão dramática e arco de personagens é descartada, preservando somente os momentos onde sentimos que realmente acontece algo, onde há algum tipo de força que não se pode identificar plenamente. Pialat esculpe grandes buracos negros entre um plano e outro: há um lugar obscuro – no extracampo, fora da imagem, fora da linguagem, entre os planos – que parece tragar tudo, e funcionar como um dos agentes da instabilidade do filme. Somos jogados de uma hora para outra numa cena que acontece meses depois, sem o menor sinal disso. Há uma espécie de vórtice que parece sugar os planos e os personagens, e essa situação lhes dá urgência. Esse redemoinho talvez seja o lugar onde o desejo e também a morte (que são o que realmente move estes personagens) podem existir, e ele paira junto a cada plano. As abruptas elipses nos mostram que tudo aquilo esta à beira do abismo, prestes a entrar numa zona de indistinção, no caos, na instabilidade absoluta (o sexo e a violência como imagens maiores deste estado e de sua ameaça). Resta ao cinema observar os momentos que antecedem, e anunciam, esta queda ou ascensão.

A observação destes breves episódios é, aqui, quase científica. As cenas de explosão entre Suzanne, sua mãe e seu irmão são um claro exemplo dessa postura: Pialat as coloca em longos planos, distanciados, que se ocupam de somente acompanhar aquela ação. Não há cortes, aproximações, ou mesmo reações bruscas àquilo que vemos. Somos uma testemunha, um olhar que se coloca num espaço e tempo definidos, dentro da cena, ocupando um lugar determinado. Daí a forte sensação de presença. O que é filmado ali são os corpos e, principalmente, a relação que eles estabelecem entre si, num jogo que se estende também a nós espectadores (a cena em que a mãe vê Suzane nua encena esta força bruta do corpo como visão e sua intensidade inerente). É esse triângulo que estabelece o pacto do filme de observação dos corpos e suas interações.

O prólogo teatral atesta isso: Suzanne “consente” em nos dar uma hora e meia de sua presença, nos oferece “estar” junto a ela, compartilhar este espaço e este tempo perto dela. E é de sua energia que nos alimentamos; é ela que não nos deixa descansar os olhos nem um segundo durante a projeção. A protagonista é a presença absoluta do mistério, da imprevisibilidade, do que não tem explicação ou causa, do que está sempre a diferir de si mesmo, do que não tem fixidez. E, ao mesmo tempo em que se oferece em sua absoluta visibilidade – se desnudando, e ocupando os mais diferentes espaços e situações durante todo o filme – parece que sua presença constante só aumenta o quanto não sabemos dela (de uma forma muito parecida com os superstars de Andy Warhol e os personagens de Pedro Costa, por exemplo). Este equilíbrio raro, entre a exposição absoluta e a opacidade radical, é o que Maurice Pialat exerce aqui com absoluta perfeição.

Setembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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