in loco - cobertura do Festival do Rio

Antonia, de Tata Amaral (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente

Filme em processo, crítica idem

É curiosa a história da chegada deste longamente realizado projeto de Tata Amaral aos cinemas. Depois dos fenômenos de bilheteria de Cidade de Deus e Carandiru, que comprovavam a existência de um interesse pela ficção dos excluídos brasileiros (desde que inseridos num determinado contexto dramático, claro e naturalmente), a Rede Globo teve a iniciativa de criar duas séries de TV (Cidade dos Homens e Carandiru – Outras Histórias), ambas bem sucedidas, em cima da continuidade daqueles sucessos de cinema – novidade extremamente bem-vinda num país onde a mão única de influência costuma ser contrária (da TV para o cinema).

Em busca de novos materiais audiovisuais nesta linha, o núcleo de Guel Arraes viu cortes ainda não finalizados do novo filme de Tata Amaral, e dentro do processo mesmo de finalização deste (portanto, antes de seu lançamento nos cinemas), escolheu-o como próxima série de TV baseada em filme brasileiro (de nome Brasilândia), série esta que já se encontra em plena realização agora que o filme chega aos cinemas. Mas o que realmente se revela curioso, para além da inédita trajetória descrita, é que agora que finalmente nos é dada a oportunidade de ver o filme original deste projeto, há no material um inegável sentimento de piloto de alguma coisa, que continuará e dará sentido ao que vemos na tela hoje. Porque fato é que Antonia, o filme, não parece se sustentar por si mesmo.

Os principais problemas que o filme (se visto como objeto autônomo) apresentam são na sua estrutura narrativa. Antonia não funciona exatamente como a estória de alguns personagens, com começo, meio e fim, e sim como uma exposição de universos (pessoais e geográficos) a serem mais explorados depois (sensação especialmente clara na participação de Sandra de Sá como mãe de uma das personagens, que parece anunciar um núcleo-problemática ao qual voltaremos em episódios posteriores). No que não ajuda em nada o seu final tão forçado e repentino, como a voz off de Thaide que o anuncia – assim como a voz off que abre o filme (e que depois se revela diegeticamente) também soa estranha e mais domesticando um material do que se incorporando ao filme. Parece que o filme começa e se encerra mais por uma obrigação exterior à lógica do que vimos na tela do que por uma prévia resolução do conflito das personagens em cena.

Entre este estranho começo e final, existe uma seqüência também estranhamente marcada de fatos, onde o revezamento entre os espaços é constante (show, volta para casa com acontecimento traumático, cena de aceitação e contextualização do trauma, show, volta para casa... e assim sucessivamente). As cenas são muito mais objetos autônomos do que parte de uma narrativa – e, o mais complicado, são objetos autônomos com finalidade por demais ligada a uma mesma idéia repetida nas letras de todas as canções: as agruras da mulher negra na periferia brasileira, e a necessidade de vencê-las. Maus maridos (entre o ausente e o dominador), gravidez precoce, preconceito, violência e prisão: parece que temos um checklist de temas a se dar conta com velocidade surpreendente – nenhum deles chegando a se tornar verdadeiramente pregnante na tela.

O filme, como força sua estrutura, vive de flashes de exuberância (os números musicais com o claro talento das quatro protagonistas, todo e qualquer momento em que Thaide entra em cena e rouba o espetáculo), algumas belezas inegáveis de encenação (em especial a cena da subida das escadas da casa, as caminhadas noturnas pelas vielas, as presenças incrivelmente potentes de Negra Li e, em especial, Leilah Moreno), e outros tiques de linguagem um tanto hiper-explorados (em especial a câmera-na-mão-universo-real-da-periferia, ou a quantidade de planos onde se faz esforço para enquadrar as personagens em primeiro plano e a super-fotogênica imagem do mundo de casas da periferia ao fundo).

A sensação que fica é que esta é uma crítica em processo, que, assim como o filme, só se completa e justifica quando chegar às telas da TV a série que o seguirá – e que, por motivos óbvios, deve chegar a muito mais espectadores, no que até se compreende perfeitamente que seja priorizada. Até onde foi o filme que se fazia desta maneira e empolgou a TV a fazer a série, ou foi o interesse da TV que moldou a finalização do filme para este produto final, não importa tanto. Importa é que Antonia, o filme, precisa (e pode) ainda ganhar força com esta série – força que o material que chega agora às telas grandes do cinema ainda não tem, ou tem apenas como potência. Estamos torcendo, e estaremos assistindo.


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