A Pele (Fur: an imaginary portrait of Diane Arbus),
de Steven Shainberg (EUA, 2006)
por Marcus Mello

Retrato da artista quando banal

Pouco conhecida no Brasil, a fotógrafa Diane Arbus (1923-1971) é considerada uma das maiores artistas norte-americanas do século XX. Sua obra influenciou cineastas como David Lynch e David Cronenberg e inspirou um dos ensaios de Susan Sontag no clássico Sobre Fotografia (1977). Sontag dedica um capítulo de seu livro a Arbus, cuja retrospectiva organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York em 1972 foi a primeira exposição individual de um fotógrafo a atrair multidões, fazendo formar filas gigantescas em frente ao museu.

Assim sendo, não causou surpresa a verdadeira disputa em Hollywood após o lançamento da exaustiva biografia da artista, escrita por Patricia Bosworth, em 1984. Disputa que se estendeu por 20 anos, envolvendo diversas atrizes (Diane Keaton, Meg Ryan, Diane Ladd, Barbra Streisand, Samantha Morton) e diretores (Luc Besson, Diane Kurys, Doris Dörrie), todos interessados em levar ao cinema a atormentada vida dessa artista genial, que interrompeu sua carreira em 1971, ao cometer suicídio.

Infelizmente, a briga em torno de Arbus chega ao fim de forma melancólica, com a estréia de A Pele, de Steven Shainberg, com Nicole Kidman à frente do elenco. Poucas vezes um projeto cinematográfico tão longamente alentado atingiu resultado tão pífio. O diretor Shainberg vinha de um longa anterior muito interessante (Secretária, 2002), e Nicole Kidman já se revelara há tempos uma atriz incomum, com uma carreira marcada por escolhas arriscadas, que a levaram a trabalhar com Gus Van Sant, Stanley Kubrick e Lars Von Trier (e, logo em seguida, ao Oscar, por sua interpretação de outra suicida célebre, a escritora Virginia Woolf).

O problema central de A Pele está em seu roteiro, que simplifica e esvazia a rica trajetória de Arbus de maneira que ultrapassa os limites do desrespeito (grosso modo, repetindo mais ou menos o mesmo que o cinema brasileiro fez com Olga e Cazuza). Amparada no fato de ter criado “um retrato imaginário de Diane Arbus”, a roteirista Erin Cressida Wilson (de Secretária) transformou Arbus numa jovem burguesa que se liberta de um casamento tedioso a partir do relacionamento com um vizinho coberto de pêlos (Robert Downey Jr., reencarnando o Chewbacca de Guerra nas Estrelas). Detalhe importante: o pai de Diane, um de seus opressores, é um magnata da indústria de peles. Deu para perceber o subtexto psicanalítico, não?

“Mas e a fotografia, onde fica?”, perguntarão alguns. Por incrível que pareça, no roteiro de Wilson a arte de Arbus está fora de questão, resumindo-se tudo a uma espécie de casamento entre Madame Bovary e A Bela e a Fera. Em se tratando de um filme sobre uma artista que se celebrizou justamente fotografando “anomalias” (anões, travestis, gigantes, siameses, aleijões, mongolóides), surpreende que o roteiro despreze, por exemplo, um dos episódios decisivos na carreira de Arbus, sua descoberta do filme Freaks, de Tod Browning. Recebido com um misto de espanto e repugnância na época de sua estréia, em 1932, o filme acabou com a carreira de Browning, sendo em seguida tirado de circulação pelos produtores. Somente três décadas depois é que Freaks voltaria a ser exibido em Nova York, tornando-se um objeto imediato de culto entre a intelectualidade nova-iorquina (foi um dos filmes que lançou a febre dos midnight movies). Arbus estava entre aquela tardia platéia de Freaks, e a biografia de Patricia Bosworth descreve com detalhes a verdadeira obsessão da fotógrafa pelo filme, ao qual ela assistiu incontáveis vezes, sozinha ou na companhia de amigos.

A insatisfação diante de A Pele não vem porque Shainberg não oferece aquilo que esperávamos de um filme sobre Diane Arbus, mas sim por ele se satisfazer em nos dar justamente o clichê mais rasteiro da artista. Buscando sem qualquer sucesso um clima de estranhamento semelhante ao dos filmes de um David Lynch (que são, talvez, a melhor tradução cinematográfica do universo de Arbus), o diretor Shainberg deve ter conseguido abocanhar o projeto de A Pele por uma razão extra-fílmica bem banal: seu tio Lawrence era amigo íntimo de Diane Arbus. Afinal, somente doses de nepotismo e tráfico de influência podem explicar semelhante desastre.


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