Apocalypto
(idem), de Mel Gibson (EUA, 2006) por Cléber
Eduardo
O martírio da vitória passageira Há
uma característica constante nos filmes de Mel Gibson. Temos invariavelmente um
herói oprimido em sua terra, que, depois de sofrer na pele um festival de torturas
físicas, alimenta-se da dor imposta pelos inimigos para obter superioridade sobre-humana,
que o torna apto a libertar seu povo, literal ou simbolicamente – embora essa
libertação não seja confirmada pela sequência da História. Vitórias temporárias,
em última instância, porque, fora seu filme de estréia (O Homem sem Face),
Gibson elegeu o passado, não para reavaliá-lo ou para confirmá-lo aos olhos da
historiografia, mas como um intervalo histórico, durante o qual os rebeldes ganham
suas batalhas, sem com isso vencerem a guerra em sentido amplo. Essa
superação do sofrimento na carne, impingida por um grupo em relação a outro, pode
ser vista no embate entre escoceses e ingleses (Coração Valente), entre
Jesus, os judeus do poder e a autoridade romana (A Paixão de Cristo) e,
agora, em Apocalypto, entre um caçador de uma tribo alegre e os guerreiros
de outra tribo (adeptos, por tradição, de sacrifícios humanos), sendo este ambientado
na América Central, no epílogo do período pré-chegada dos espanhóis. Em todos
essas empreitadas, atola-se no maniqueísmo mais deslavado, criando-se generalizações
estigmatizantes, sem relativizações e contextos, de modo a se afirmar um princípio
de vida: a regra do toma lá, dá cá, tão normatizada pelo cinema de gênero. A legitimação
da reação violenta contra a ação violenta, de modo a romper fronteiras entre vingança
e justiça, ressentimento e auto-defesa, cria uma mentalidade paradoxal dentro
da chave cristã do martírio carnal – à qual, de alguma forma, essas narrativas
epidérmicas estão vinculadas. A dor aqui não salva ou redime, não visa à transcendência
ou a purificação, estimulando, ao contrário, o troco (título, aliás, de um filme
estrelado por Gibson, e no qual se diz que ele teve grande influência sobre a
realização) e, em última instância, tornando-o moralmente aceitável. Mesmo
em A Paixão de Cristo havia revanchismo, apesar das aparências ao contrário.
Para ser um personagem de Mel Gibson, o Cristo teria de ressuscitar no terceiro
dia e, antes de subir aos céus, precisaria fazer pó dos romanos e dos judeus,
por quem foi diretamente ou indiretamente agredido até a crucificação. Se ali
o protagonista morre, sem ser vingado, o ressentimento é semeado. Gibson parece
menos interessado nos valores afirmativos de seu personagem escolhido como salvador
e mais em mostrar as razões das perseguições históricas aos judeus nos últimos
dois milênios, quase para legitimá-las. Troca o sagrado pelo profano e, por uma
operação lógica e retroativa de causa e efeito, compreende o anti-semitismo –
se não para aprová-lo, ao menos para justificá-lo. O
ator-diretor parece rezar em um cristianismo revanchista (sic), que, para embotar
qualquer reflexão distanciada do espectador, produz ferimentos brutais em seus
personagens, procurando nos chocar com a suposta ausência de limites para a encenação
da violência. Sua relação com a platéia tenta ser orgânica, no sentido literal
de produzir reações químicas no corpo. É dessa maneira que, com nosso corpo supostamente
adrenalizado pelas imagens cruéis, ele reivindica nossa procuração, solicitando
que o herói da narrativa, em nosso nome, devolva toda carga de dor sofrida a quem
o fez sofrer – cuja síntese, em sua filmografia como ator/persona cinematográfica,
seria O Patriota, ambientado na guerra civil americana, com o herói vingando
família e país de uma vez só.
No entanto, para uma imagem violenta ter
efeito violento sobre nossos olhos, emoções e corpos, a encenação, no terreno
gráfico, tem de ter impacto estético. E em Apocalypto há um senso, nunca
inteiramente assumido, de autoparódia. Os excessos conduzem o filme para o universo
do terror B, com profusão de cabeças cortadas, sangue esguichando e lanças perfurando
os corpos, mas, sem com isso, esvaziar a seriedade com a qual parece estabelecer
seu discurso. Ficamos no meio termo entre a violência com disposicão política
de gerar espírito reativo e a violência puramente estilizada/espetacular, que
é esvaziada pela forma para se tornar pura estética, sem compromissos morais com
a encenação, como em Michael Mann (O Último dos Moicanos) ou em Tarantino,
para citar dois cineastas habilidosos nesse esvaziamento da violência como dado
moral e como ameaça ao humanismo. Não se vê adesão integral a uma opção ou outra,
mas uma soma dessas possibilidades, ora fazendo da violência um gesto político
necessário como afirmação de povo, ora a utilizando apenas como atrativo reivindicado
pela demanda por consumo de corpos esfolados. A
novidade em Apocalypto, ausente de seus outros filmes, é a importância
da natureza. Logo na primeira sequência, um traveling lento adentra a mata,
com o som empenhado em nos legendar esse ambiente como espaço hostil. Após alguns
segundos, vemos passar um corpo, de relance, antes da aparição de um animal selvagem,
acompanhado de um corte sonoro impactante, que nos instala em um mundo de ameaças.
Elas virão tanto pelas mãos dos homens como pela própria condição da natureza.
As forças naturais serão apresentadas como agressivas, contra o homem; mas, se
dominadas com sabedoria, poderão também servir como arma de defesa. É assim que,
embora ao longo da narrativa vejamos ataques de cobras, macacos e leopardos, além
dos riscos ofertados por cachoeira e por areia movediça, o herói usará abelhas
para se safar. Sua família ficará protegida, por todo o tempo, dentro de um buraco
e, quando está para se ampliar, o parto se dará sob a água – fazendo do buraco
uma espécie de útero da natureza, de onde homem e a mulher surgem no Genesis.
Será a terra pela qual luta que irá manter acesa a espera da resistência. Consciente
de alguma forma de seu trabalho como ator em Sinais, de M Night Shyamalan
(como vemos sobretudo em uma sequência de perseguição em um milharal), Gibson
na verdade apropria-se mais de soluções cênicas de outro Shyamalan (A Vila),
reutilizando o buraco como elemento espacial de fundamental importância dramática,
e resolvendo a rivalidade do herói com o principal algoz em uma sequência parecida
com a da partida de Adrien Brody para cima de Bryce Howard. No entanto, quando
deixa de ser o fugitivo para se tornar o perseguidor, algo viabilizado pela
familiaridade com a terra (tudo é uma questão de terra, no fundo), o herói torna-se
um Rambo. Pode-se adentrar na questão das representações
estereotipadas de povos e de culturas, até porque o filme é prato cheio dentro
do contexto das pesquisas e das análises multiculturalistas, mas a dinâmica de
encenação é tão pouco verossímil que o efeito ilusionista acaba esvaziado em si
mesmo, justamente por ameaçar nossa crenca naquelas imagens. Gibson escora-se
nos dialetos maias para escapar da acusação de manipulação irresponsável de identidades
culturais históricas, embora tenham sido várias as reações negativas a sua apresentação
dos nativos como figuras selvagens e bárbaras, que carregam em seus rituais sanguinolentos
a semente da violência – atenuando, assim, o papel dos europeus no banho de sangue
na formação dos Estados. Ao final, há uma ironia. O herói
parece ter se safado, entre outros motivos, porque é protegido por Deus, a quem
se dirige olhando para o céu e a quem emite palavras de ordem, deixando claro
sua condição de escolhido para salvar sua família e continuar um projeto de resistência
(de seu povo). De nada valerá a vitória na batalha pessoal, porém, ao menos para
além do filme, porque, se a chegada das caravelas espanholas, salva sua cabeça
temporariamente, representará, na continuação do processo histórico, a dizimação
de um povo e de uma cultura, condenando o futuro terceiro mundo a sempre resistir
apenas em questões pontuais, sem direito a emancipação. Para Gibson, não importa.
O importante é sempre contra-atacar na mesma moeda e na mesma medida. Menos dentro
de um contexto de estratégia política, de anti-ocupação, e mais em uma dinâmica
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