in loco - cobertura dos festivais
Après Mai, de Olivier Assayas (França, 2012)
por Filipe Furtado

Imagens como política

“Toda revolução tem de nascer da poesia, foi antes de tudo feita com a força da poesia. Este fenômeno continua a escapar aos teóricos da revolução – de fato, ele não pode ser compreendido por aqueles que se agarram às antigas concepções de revolução ou poesia – mas foi geralmente pressentida pelos contrarrevolucionários. A poesia lhes assusta. Sempre que ela aparece, eles tentam se livrar dela por todo e qualquer tipo de exorcismo, do ato da fé à pura pesquisa estilística. A poesia real, que tem ”um mundo e um tempo suficientes", procura reorientar todo o mundo e todo o futuro para seus próprios fins”.
Internacional Situacionista (1963
)

No meio da década passada, Olivier Assayas publicou um pequeno volume memorialístico chamado “Une Adolescence dans l’après Mai: lettre à Alice Debord”, sobre suas experiências no começo dos anos 1970. Seu novo longa, Après Mai, é muito conscientemente pensado como uma extensão natural daquele relato, expandindo para ficção muito das preocupações presentes nele. Isto garante ao filme características próprias entre outros que lidam com o período, interessado que está em ecoar uma experiência muito particular (“minha carreira anedotal como esquerdista” começava Assayas no seu livro), que existe relativamente ao largo de boa parte do imaginário da época e, de forma mais essencial e refrescante, das revisões sobre ela.

Après Mai
tem pouco interesse na nostalgia soixante-huitard (ou sua denúncia arrependida), em dar vazão ao desencanto do período (como em Mourir à 30 ans, de Romain Goupil, ainda de longe o melhor filme sobre o pós maio na França) ou mesmo em articular o tipo de revolta jovem que servia de combustível para o Água Fria, do próprio Assayas. No lugar disso, o diretor constrói seu filme como um grande painel sobre a articulação entre o temperamento artístico, a inclinação de esquerda em seu momento de esgarçamento e o apelo das imagens para formação do cineasta. Este desejo aponta muito do frescor de Après Mai, mas também seus limites. Ao construir sua recordação de forma tão intencionalmente teórica, Assayas nega-lhe qualquer chance de alcançar a intensidade de um Alma Corsária ou Amantes Constantes. Se dos filmes de Reichenbach e Garrel resistem na memória sobretudo personagens e rostos, em Après Mai o que sobra é o espírito curioso de Assayas e a perspicácia de algumas das suas observações. Há também uma sensação constante de que o filme sente necessidade de cobrir certas áreas porque é o que se espera dele, e isto resulta em algumas sequências bem protocolares (um problema que também dava as caras nos momentos menos inspirados de Carlos), que ressaltam o enfado de Assayas com a tipificação típica do período. Como toda boa memória, Après Mai é tão mais forte quanto mais próximo do especifico o filme se revela, e gira em falso quando flerta com o genérico.

Não deixa de ser curioso, dada a raiz literária do filme, que seus três principais pontos de referencia (Guy Debord, George Orwell e Philippe Garrel) nunca sejam diretamente mencionados, mas apenas tenham seus espíritos invocados para assombrar toda a ação. O olhar de Après Mai é dominado pela ideia de um socialismo democrático que Orwell desenvolveria a partir do seu Lutando na Espanha, outro relato muito diferente dos fracassos e subsequente ressaca da esquerda marxista trinta anos antes. O retorno a Orwell por si só nos diz muito do que distancia o filme da maioria dos relatos do período, já que para Après Mai 1971 é somente mais um ano, importante individualmente para seu autor porque refere-se à sua formação, mas somente para ele. Assayas sabe que, para pensar politicamente, é preciso despir aquele momento de qualquer caráter excepcional, evitar colocá-lo na moldura celebratória.

Assayas subtitulou seu livro como uma carta à viúva de Guy Debord, e os situacionistas de fato dominam seu olhar, além de servirem de ponte entre política e arte que tanta fascina o realizador. Assim como o conceito de deriva sempre marcou uma influência muito visível nos filmes do cineasta (incluindo este), Après Mai lhe permite se debruçar mais diretamente sobre de que maneira, num universo cada vez mais saturado com a retórica radical do período, o desejo de Debord de, nas palavras do próprio cineasta, “preservar um compasso moral em termos de que tipo de reimaginação revolucionária da sociedade seria possível”, servia como uma alternativa sedutora. É na passagem do situacionismo para o sectarismo menos produtivo por parte do marxismo francês que o filme se concentra e certamente não é acidente que a internacional situacionista, tão central para as manifestações de Maio/68, oficialmente tenha encerrado suas atividades por volta do período aqui coberto. O filme é muito hábil em captar a asfixia esterilizante do pós-situacionismo da esquerda francesa e, de forma pouco comum para um olhar sobre o período quarenta anos depois, revela considerável simpatia pelas posições da ala mais radical dela, que concluiu que o terrorismo era a única saída restante para fora da sua camisa de força ideológica (o filme, como sua influencia orwelliana-debordiana torna inevitável, só reserva genuína antipatia pelos apologistas do stalinismo e da revolução cultural chinesa).

O olhar de Debord sobre o caráter revolucionário da simbiose entre arte, política e vida ilumina cada plano de Après Mai. A curiosidade, presente na câmera em constante movimento que é a marca registrada do seu autor, não deixa de se uma expressão direta disso. Boa parte do filme se dedica a lidar com a ansiedade do cineasta e de seus personagens em colocar estas mesmas ideias e também com o apelo sedutor que as imagens (e principalmente as imagens de cinema) podem ter em meio a este mesmo anseio. O cinema francês na década de 1970 foi rico em lidar com estas questões em filmes do próprio Debord (In girum imus nocte et consumimur igni), Jacques Rivette (Out 1 e, numa chave fantástica, Celine et Julie vont em Bateau) e Jean Eustache (A Mãe e a Puta), mas é na fase mais abertamente experimental do cinema de Philippe Garrel que elas se revelam essenciais.

A centralidade de Garrel para a formação do olhar da geração de Assayas (pensemos também num Carax ou Denis) transpassa todo este Après Mai, em particular pela crença sempre potente que este cinema expõe da intersecção entre política, o ator e o poder poético deflagrador da imagem cinematográfica. Garrel afinal foi dos poucos cineastas que filmou à época os conflitos de Maio, mas é também aquele que, no momento posterior, se dispõs a filtrá-lo pela chave de filmes tão aparentemente removidos do seu momento quanto essenciais em dar uma direção para seu espírito, como La Cicatrice Intérieure ou Les Hautes Solitudes. É uma abordagem que mesmo hoje não é vista com facilidade por boa parte da critica de viés marxista – basta olhar para o tom de admiração reservada dos vários textos de Jonathan Rosenbaum sobre ele, em que se expõe o mesmo misto de fascínio pelas imagens e ansiedade diante da ideia de que muitos outros enxergam nelas um forte sentido político.

Après Mai
se encerra justamente com seu protagonista se alternando entre o trabalho num filme B em Londres e visitas às sessões de cinema experimental na cidade, num plano em que o filme finalmente rompe por completo com o seu realismo e permite a Assayas reimaginar, em um filme à Garrel por volta de 1971 ou 1972. Se, nos seus momentos menos inspirados, Après Mai sugere pouco mais que uma diluição convencional deste imaginário garreliano, no seu melhor porém o filme repropõe o mesmo como uma porta de saída essencial para revalorizar o mesmo sentimento de revolta poética que Debord e seus colegas situacionistas desenvolveram nas duas décadas anteriores à sua ação. No processo, o filme encontra um sentido político ausente da maior parte das celebrações vazias associadas à época.

Outubro de 2012

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