in loco - cobertura dos festivais
Ardor Irresistível, de Ava Gaitán Rocha (Brasil, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira

Semeando a utopia

Durante o ano de 2007, o grupo Teatro Oficina preparou em Canudos-BA, cenário onde a guerra histórica ocorrera, a apresentação do espetáculo “Os Sertões” com a saga integral de 5 ciclos. A diretora Ava Gaitán Rocha aproveitou-se de sua intimidade com o grupo (chegou a ser atriz e cantar na peça), e deste evento único no teatro contemporâneo, para realizar o documentário experimental Ardor Irresistível. Registrou as movimentações na cidade, a montagem da tenda/palco e a encenação propriamente dita. Capturou o movimento dos corpos e cânticos tão expressivos da peça e a inserção do povo sertanejo nela, juntando-os a uma forma de reconstituição de época da guerra histórica para realizar um documentário poético onde passado e presente se embricam – a cidade resguardaria a cicatriz desta guerra que a peça invoca e transforma em monumento.

O título de Ardor Irresistível faz referência a um mote: aquele que o Teatro Oficina, e seu célebre mentor Zé Celso Martinez Correa, extrairam e traduziram à sua maneira do título do movimento germânico Sturm und Drung. O movimento do século XVIII, cujos representantes centrais foram Schiller e Goethe, fora uma reação emotiva às idéias iluministas e ao classicismo francês da época. Mas na apropriação que o grupo de teatro contemporâneo brasileiro faz dele, além de herdar o romantismo de sensibilidade exacerbada, o ímpeto tempestuoso, e a relação mítica com o passado, o termo adquire, em vez de uma crise desesperada, uma conotação politicamente afirmativa que passa por conceitos como amor livre, contágio e utopia.

Assim, um ardor irresistível seria uma espécie de calor repleto de amor que se expande e contagia, que se entranha com furor no fundo de todo movente artístico, uma aclamação entusiasmada e quixotesca que se põe contra uma sociedade distópica. Pois bem, a inconsistência de Ardor Irresistível começa em algum lugar por aí: o que é exatamente que justifica esta celebração poética? O choque que o filme nos causa não se torna inofensivo a partir do momento em que não estamos dispostos a aceitar reduzir o mundo a dualidades como utopia/distopia, poesia/convenção, ardor/silêncio? E onde, no meio daquelas imagens desconexas, daquela experimentação com sua matéria, se encontra a tal força comovente que Ardor Irresistível grita a cada átimo?

A forma que Ardor Irresistível leva a cabo nasce de dois movimentos: por um lado, de uma busca por esta poesia manifesta, este ardor amoroso e gritante, utópico e romântico que se quer poético; e por outro, num ímpeto político de resgatar uma memória histórica brasileira, enraizá-la e torná-la monumento. Isso resulta num certo alegorismo da imagem dos soldados e na exaltação/romantização da Guerra dos Canudos e suas iconografias como um evento a ser exaltado na cultura brasileira – encontrando a sua mais vívida expressão nos cantos e no projeto de encenação coletiva de “Os Sertões”– na relação que aquela montagem específica tem com o povo da atual Canudos. A jornada sensível da diretora, debruçando-se sobre sua própria subjetividade para circunscrever os fantasmas daquele local num movimento de projeção do interior para o exterior, se concilia com este projeto espetacular e canônico.

Mas parece também que não podemos estar aptos a indagar por quê. Como em todo projeto supramente romântico, não deve se fazer perguntas, deve se “contaminar e aceitar”, ver erigir a Guerra dos Canudos como elegia da nossa cultura sem ao certo entender o porquê deste gesto afirmativo ser tão importante. Assim, Ardor Irresistível nos exige demais – não apenas que se saia da sua zona de conforto, de um mundo entorpecido por convenções que rejeita a experiência, mas principalmente, que compactuemos com este ardor que é ao mesmo tempo um projeto sensível, comunitário e utópico. Para dar este passo pretensamente milagroso, seria necessário entregar nossos olhos, parar de pensar, aceitar umas mil premissas prontas (da qual, por sinal, o filme é produto, e não produtor). Razão pela qual, talvez, quem não compactue fique do outro lado de uma barreira intransponível de toda esta poesia, sem se deleitar, num lugar de imobilidade, onde o encanto místico lhe parece algo de tolo e inofensivo.

Dezembro de 2011

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