As Canções, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2011)
por Fabian Cantieri

Abraçando o outro

Assumo: esta escrita é de impulso imediato. Coutinho faz isso com a gente. Na verdade, impossibilita qualquer descrição próxima à vivenciada dentro da sessão. Largo da impessoalidade para almejar, talvez de uma maneira torta, tatear na intimidade proporcionada por um filme que, de tão esquemático, se torna uma eterna surpresa a cada verbo, respiro e inflexão que decorre. Uma reação primeira a um filme que beira o “acriticável”. Um filme que inova se repetindo, surpreende avisando.

Se faltam palavras, não é pelo encontro de um modelo de perfeição. O que impõe a barreira do inefável em As Canções é seu mais bruto estado de simplicidade. Uma cadeira sobre um palco, pessoas contando estórias a partir de uma canção marcante e Coutinho do outro lado. Pragmaticamente, está feita a autópsia, mas é na imanência de cada um desses três elementos que reverbera a maior filosofia de Eduardo Coutinho – a pluralidade é a lei da Terra. E a partir desse Big Bang nasce a curiosidade. Os homens nascem com a única condição em comum de aparecerem uns para os outros, perceberem e serem percebidos por outras criaturas com órgãos sensíveis apropriados, e é dessa convivência que surge o fenômeno da experiência e sua apreensão construtiva. E qual experiência seria possível sem o outro?

Coutinho sabe, melhor do que ninguém, retirar qualquer verniz desnecessário das suas obras pra se focar na essência do seu interesse direto – quer conhecer os outros e o outro se conhece por sua história de vida, por suas estórias contadas. Estórias que se desdobram a partir da arte mais incrustada na alma do brasileiro – a música popular que, segundo um dos próprios entrevistados no meio do filme, é o catalisador da memória (“Como alguém pode lembrar de alguma coisa, sem a canção para ajudar? Existe o cheiro, mas nada como a canção”). É a melodia entoada pelas vozes muy vividas que impulsionam a mais recôndita lembrança em vida. É a melopéia dos dizeres, com suas idiossincrasias nas pausas, entonações e tiques que se tornam plenos enquanto ditos.

RaniaO espectador tem o prazer de presenciar o ato mais puro da narração enquanto tal. Narração que, para chegar até nós com tal precisão, passa necessariamente por uma precisão de seus tempos. Ritmo não só entre os cortes das entrevistas, mas numa montagem que privilegie a forma de contar. Não basta alguém ter uma estória sensacional, tocante ou engraçadíssima – todos ali sabem como contar suas estórias. Coutinho disse uma vez que sua primeira espectadora é a própria montadora do filme, quando vê o bruto pela primeira vez. Contava que Jean Rouch, nesse estágio de primeira vista, abandonava o monitor e se virava para a montadora para saber quais planos eram atribuídos de “graça”. Coutinho, se não segue esse maluco torcicolo de uma, duas horas, é porque, além de lucidamente evitar as complicações físicas, parece já ter a maestria de onde acionar a pausa e onde ir com força total. Cria uma perspectiva de catarse intermitente. Desigual em suas forças, constante em sua perenidade.

Diferente do que esta mesma revista escreveu sobre a relação imposta por Coutinho em Jogo de Cena, não estamos (nem lá, nem aqui) diante da lógica do afeto. A palavra dura e melódica se potencializa para a vida, como um espelho de conflagração de um estado e, ainda assim, como um aprendizado empírico para o receptor da mensagem do outro lado da tela. Estamos sim diante de um melodrama - drama que, sem querer se importar em ser verdadeiro ou falso, acontece diante de nossos olhos, com sua decantação em fonemas com o peso de todo o significado que elas poderiam agüentar. Fonemas que viram estórias que são refletidas ou se refletem em canções.

Canções que, em sua maioria, quando não compostas pelos próprios personagens, olhadas en passant no mesmo bolo, podem parecer puramente nostálgicas ou conservadoras, por seu repertório que remete mais a Francisco Alves e outras vozes portentosas do que a qualquer harmonia contemporânea. Mas para irmos a busca de uma identidade é preciso ir de encontro ao singular. O que está posto em evidência, com Noel, Vinícius, Roberto Carlos ou Jorge Ben, é a gravitação da música em torno da vida. “Perfídia”de Francisco Alves, interpretada pelo corte de dois personagens – um que se emociona ao cantar e outra que a desdobra para sua história – é o retrato em branco e preto de uma relação perene. O desfecho com a mulher cantando a música de Tom e Chico é a expressão vivaz de quem antevê a contundente tragédia mas enverga a empreitada como deleite experimental. É preciso viver, mesmo com o fim trágico, afinal trágica não é sempre a chegada da morte?

Mais do que a música popular brasileira entoando o carrilhão dos planos, temos o amor vestindo o quadro. Filho que compõe para o pai perdido, mulher que não se incomoda com uma eventual amante e ama por dois, homem que tem um amor tão grande que precisaria de outro mundo pra caber todo ele. Quando posto isso em palavras escritas, fica nítida a impressão de que o cafona reside nestas poucas palavras mal engendradas daqui e de que existe uma transliteração mágica no cinema de Coutinho. É só ouvir uma canção de Roberto pra entender. Para o crítico, basta sair, assim... “de smooth” e ter em mente a singularidade de uma sessão inigualável.

Outubro de 2011

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