O Homem Duplo (A Scanner Darkly),
de Richard Linklater (EUA, 2006)
por Francis Vogner dos Reis

Por uma política das relações

Nada parece mais distante de títulos como Antes do Amanhecer, Antes do Pôr do Sol, Escola do Rock, Suburbia e Jovens Loucos e Rebeldes do que uma ficção científica em rotoscopia (técnica de desenho em cima de imagens live action), de caráter evidentemente político. A diferença é aparente, assim como tudo no cinema de Richard Linklater. O esforço do diretor em seus filmes é procurar a autenticidade da cena, frontalmente, na aparência. Sua câmera é colocada em frente a personagens falando e/ou agindo, e em um olhar atento, aparece uma segunda camada nessas imagens que é, absolutamente, o espírito da encenação: a auto-consciência dos atores e a precisão do diretor em captar somente o essencial. Assim, se revela uma verdade particular da imagem (pelo menos das imagens do diretor) em sua dubiedade, como se a relação com os atores, intermediada por sua câmera, revelasse a transparência da cena sem qualquer operação metalingüística.

O cineasta faz uma análise da cena “bruta” em uma ideologia básica de ator-câmera-enquadramento. Portanto, o que Linklater faz é um “estudo de cena”, que atingiu seu ápice em Antes do Pôr do Sol, onde invariavelmente (e nessa questão) procede a comparação com Eric Rohmer. Pois a captura do “essencial”, a obsessão principal de Linklater, surge mesmo em O Homem Duplo, onde saltam aos olhos a quantidade de técnicas, de informações, de fragmentos e estilhaços de imagens. Como buscar a autenticidade da encenação embaixo disso tudo? No excesso, aonde está o essencial? São essas questões que Linklater tentará responder, mesmo que a experiência não vigore satisfatoriamente em todo momento.

Para um cineasta que sempre lidou com comédias e tramas mais simples (à exceção da ascese filosófica de Waking Life, seu outro filme em rotoscopia), a premissa de O Homem Duplo, baseada em livro de Philip K. Dick, parece (e é) bastante intricada: em um futuro próximo, Bob Archer (Keannu Reeves) faz parte de uma divisão da polícia que tenta reprimir a disseminação da droga “substância D” por meio de um circuito de alta tecnologia com câmeras espalhadas pela cidade, operadas por agentes anônimos que se envolvem nas investigações como infiltrados em grupos de traficantes. Archer é um desses agentes: infiltrado em um grupo, acaba se viciando na droga. Aparecem aqui questões novas na obra de Linklater, sobretudo o modo de percepção que os personagens têm do mundo à sua volta.

Temos um circuito de câmeras que espia os viciados, os efeitos da droga também como modificadora de visão de mundo e a roupa que os agentes usam, que lhes esconde a identidade por meio de imagens constantes de um milhão de pessoas. Linklater não se furta em afirmar que toda imagem tem uma identidade escamoteada ou parcialmente revelada. O mundo, então, é observado por meio de mecanismos transformadores da imagem. É como se a imagem não pudesse mais ser pura (ou básica, como na maioria dos seus filmes câmera-ator-enquadramento), e ela inevitavelmente precisasse passar por um processo de metamorfose. É a questão: aonde se localiza o autêntico em um mundo de imagens reprocessadas?

Não estamos em um universo semelhante ao de Brian DePalma, que entende a imagem como farsa do real. Estamos talvez mais próximos de certa experiência do cinema contemporâneo que tem como representante máximo demonlover de Olivier Assayas, porque a imagem não visa mais o engano pela representação, mas pela a saturação de diferentes suportes de imagens: em um mundo composto de imagens fabricadas, a realidade se torna um arcabouço de imagens essencialmente fragmentárias. Nessa concepção, o “todo” (ou o real) não é mais uma entidade absoluta, mas um conjunto de fragmentos, de fatos. Assim, Richard Linklater não abandona seus estudos da encenação, mas o amplia, dessa vez partindo do excesso de fragmentos, para chegar ao essencial.

Embaixo de todo esse excesso de informações visuais, temos (de modo bem claro, até) a relação que o diretor busca estabelecer com o personagem Bob Archer. Se muitas vezes ele adota o ponto de vista subjetivo do personagem – geralmente para descrever o que vê por meio dos visores digitais e o efeito da substância D que induz sempre ao engano visual - , seu esforço maior é tentar apreender algo dele além desses efeitos de imagem, sobretudo em sua relação apaixonada com a personagem de Winona Ryder – que, inclusive, é a que mais se esconde, mais escapa da consumação do sentimento de ambos, como se isso fosse revelar algo de autêntico que ela insiste em esconder. Veremos, no fim do filme, o que, o porquê e como sua personagem se esconde de Keanu Reeves, como ela tem de falsear sua relação com ele para realmente conseguir ter algum contato real, autêntico. É justamente nessa relação (e não só) que reconhecemos o Linklater que estamos acostumados: o cineasta que acredita que o jogo cênico das emoções (Antes do Pôr do Sol, sobretudo) é capaz de fazer transparente qualquer princípio de encenação. O que os personagens dizem e pretendem “parecer ser” para seu interlocutor, nem sempre é o que de fato vemos.

Se a política das relações aparece no furor infanto-juvenil de A Escola do Rock e Sujou...Chegaram os Bears, no básico essencial dos seus filmes com Julie Delpy e Ethan Hawke, na guerra de poderes entre os adolescentes colegiais em Jovens, Loucos e Rebeldes, aqui, ele procura entendê-la em um contexto em que essas relações são intermediadas por imagens falsas e relações de poder. Certamente, o resultado é angustiante, porque fica no ar uma questão (a formulação - dentre toda a impureza dessa nova ordem das imagens - de uma política das relações) e um desejo (o trunfo, da experiência autêntica). Desencantado, Richard Linklater faz de O Homem Duplo seu filme mais melancólico.


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