Assim
é Se Lhe Parece, de Carla Gallo (Brasil, 2011)
por Eduardo Valente
O
artista é/e a obra
Dentro da subcategoria dos documentários sobre
artistas, uma seção especial se dedica às artes plásticas. Curiosamente,
nestas em geral se observa menos as biografias (como é predominante
no caso da música) ou a obra (algo sempre presente nos filmes
sobre cineastas, por exemplo), e dá-se muita atenção ao processo
de criação. É como se a música surgisse pelo que o músico viveu,
mas fosse impossível de ser filmada “vindo ao mundo”, ou como
se os filmes fossem a maior evidência possível que se pode exibir
sobre o trabalho de um artista do cinema, enquanto nas artes plásticas
a busca da inspiração, da gênese, da observação do processo pessoal
fosse o que de mais mágico se pudesse registrar – aquilo, em suma,
que torna um artista alguém único, diferente de todos os outros,
como a maioria dos filmes (em geral, hagiográficos) parece tentar
construir.
Neste sentido, Nelson Leirner surge neste Assim
É Se Lhe Parece como um duplo desafio para a cineasta Carla
Gallo: primeiro porque, de saída, seu discurso e sua prática,
bastante admitidamente influenciados por Warhol, Duchamp e pelo
dada em geral, não aceita essa idéia da figura do artista
como ser único, especial, descolado da mesma realidade terrena
onde circulam os mais reles mortais. E segundo porque seu processo
criativo, como ele mesmo demonstra em várias cenas do filme, passa
muito menos pela noção de inspiração ou de epifania, e muito mais
pela lúdica relação com objetos e situações absurdamente cotidianas.
É aí, entre a linguagem do pop e a das ruas, que a diretora vai
então tentar encontrar o seu personagem – alguém que se encontra
numa mesma medida entre a Broadway e as ruas do Saara, algo que
é muitíssimo bem percebido e encarnado no filme através da trilha
sonora idealizada pela também cineasta Lina Chamie. No entanto,
mais do que a escolha do lugar certo para filmar seu objeto, ou
as pequenas inserções estéticas em diálogo com seu universo (além
da já citada trilha sonora, temos também as cartelas de créditos
que dividem o filme em várias microcenas, quase como um 32
Fragmentos sobre Glen Gould), a decisão mais acertada de Gallo
na direção do filme é a que percebe que o estar no mundo de Nelson
Leirner possivelmente seja sua grande obra de arte – e nesse sentido,
seu filme se aproxima do Waly Salomão de Pan-Cinema Permanente,
de Carlos Nader.
Sim,
porque embora não falte no filme a catalogação de uma série de
importantes trabalhos do artista ao longo das décadas de seu trabalho,
nem eventuais importantes narrativas histórico-cronológicas sobre
sua trajetória (como as cenas sobre o Grupo Rex), onde parece
que mais aprendemos de fato sobre Leirner, e sua arte, é nos momentos
em que o filme o flagra dando uma aula, passando conselhos para
uma aspirante a artista, dando entrevistas em sua vernissage,
recebendo bençãos de uma amiga, negociando numa barraca de camelô
ou simplesmente brincando com seu cachorro. Não se trata, de forma
alguma, de uma concepção a partir da qual se crê que uma verdade
maior sobre uma pessoa se revela apenas na sua intimidade e pequenos
momentos – no sentido como trabalha parcialmente, por exemplo,
um Nelson Freire. Mas sim, e aí voltamos ao filme de Carlos
Nader, de perceber que para Leirner a persona pública e a privada
coexistem de uma tal maneira que sua vida e sua arte são praticamente
a mesma coisa – e aí faz todo sentido quando descobrimos, já quase
no final do filme, como uma reprodução da sala da sua casa acaba
se tornando uma obra de arte.
Por fim, vale dizer que o filme é parte de uma
série encomendada pelo Itaúcultural, sob o nome geral “Iconoclássicos”
– e é curioso notar como Assim é Se Lhe Parece acaba se
adequando perfeitamente ao título do programa. Pelo lado mais
óbvio, claro (e que certamente levou à escolha do seu nome pelo
instituto), já que Leirner é um destes autores tornados clássicos
mesmo (ou principalmente) por sua postura destruidora dos cânones
artísticos estabelecidos (não custa lembrar que os outros filmes
da série se dedicam a Leminski, Sganzerla, Zé Celso e Itamar Assumpção).
Mas também porque, embora perceba bem essa parcela mundana da
persona artística de Leirner e nunca apele para algo como entrevistas
de especialistas sobre sua obra e a importância que tem, o filme
de Carla Gallo mantém frente à figura do artista uma certa distância
respeitosa, algo certamente inspirado pela sua presença ao mesmo
tempo acolhedora e um pouco intimidante. Frente a um “clássico
vivo”, o filme parece descobrir, é difícil ser iconoclasta.
Abril de 2011
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