in loco - cobertura do Festival do Rio
Cinema com (e sem) assinatura
por Paulo Santos Lima
O Grito das Formigas (Shaere Zobale-Ha),
de Mohsen Makhmalbaf (Índia, 2006) - Panorama
A Estrada (Fang Xiang Zhi Lu), de Zhang Jiarui (China,
2006) - Panorama
O Meu País em Ruínas (My Country,
My Country), de Laura Poitras (EUA, 2006) - Fronteiras
Mais pelas opções equivocadas, talvez,
é fato que nessa primeira semana de festival (em que circulam
menos informações sobre os filmes pouco conhecidos)
é mais fácil cair em algumas armadilhas. Tanto
que, num Estação
Botafogo 1 nada lotado, em primeiro horário, o filme de
Mohsen Makhmalbaf, longe de ser bom, foi o filme mais intrigante
nos meus dois primeiros dias. Ou, melhor, pelo menos digno de
análise sobre a figura de Makhmalbaf, que, me parece, sempre
usou o cinema mais como extensão de sua atitude política
do que como expressão sensorial sobre o mundo. O resultado,
na média sempre satisfatório e algumas raras vezes
notável (Bom Dia Cinema), deve-se ao razoável
talento de Mohsen como cineasta.
Nesse
O Grito das Formigas, está claro: Makhmalbaf, na
rasura de suas discussões, usa malandramente elementos
de impacto, como fizera em No Caminho de Kandahar. No novo
filme, temos Makhmalbaf usando uma gramática que cunha
seu discurso como universal, como relativo ao Homem – mas
antes de tudo é o Irã que está em questão.
Assim como em O Céu que Nos Protege, de Bertolucci,
aqui temos um casal (iraniano) que viaja, em franca discordância,
às terras indianas. A esposa procurando uma nova fé,
algo novo para acreditar, e para tal procura um líder indiano,
o Homem Perfeito. O marido, mais cínico e também
mais sábio, percebe o quanto a religião e as crenças
derretem a consciência dos homens para seus verdadeiros
problemas. É um homem da imagem, da evidência material,
como ficará claro quando ele pega a dv-cam para mostrar
para a mulher que o mundo não é tão belo
assim, registrando a miséria daquelas terras que, inéditas,
enganam e aproveitam a generosidade de julgamento da esposa. É
a melhor seqüência do filme, porque justifica a viagem
do cineasta àquele país. Com uma câmera, é
possível chegar perto de alguma verdade concreta.
Este marido, claro, é alter-ego de Makhmalbaf.
Mas, para justificar seu desquite com esse mundo ainda tão
afinado com crenças e válvulas de escape, Makhmalbaf
vai a um país não só com abismos sociais,
como possuidor de tradição mística. Caminho
fácil, uma vez que, no Irã, talvez seu discurso
não mais consiga respaldo através do cinema, ou
ainda, não esteja embalado com certo ineditismo, que é
no que seu cinema vem se apoiando. O tropeço do cineasta,
no entanto, está na sua tentativa de alcançar mais
uma dimensão de humanidade do que de humano com seu filme.
Imagens dignas de Apocalypse Now, portanto bárbaras,
gotejam por todo o filme, lembrando o horror que há na
beleza da vida. A câmera, mostra os cadáveres putrefatos
nas águas contaminadas do Ganges, enquanto indianos celebram
a vida e seus milhares de deuses. O horror, o horror...
Ao contrário de Makhmalbaf, Zhang Jiarui
não tenta um olhar "transcendente" com seu cinema,
um diagnóstico sobre o mundo atual, mas sim um passadismo
estranho, colocando o tempo anterior sempre como o momento supremo.
Estranho porque, no caso, o palco dos acontecimentos desse A
Estrada é a China dos anos 60 ao século 21.
Uma história de amor, com chinesinha meiguinha tendo seu
romance com médico embargado pela dogmática Revolução
Cultural. Tudo mostrado com uma fotografia de luz branca, daquelas
que embelezam tudo. Uma história que poderia estar em qualquer
outro lugar, mas só poderia estar nesta dramaturgia. Afinal,
a China e sua história aqui são apenas palco, e
nunca resultantes de uma dialética de espaços e
personagens (ou seja, de mise-en-scène), como nos
filmes de Jia Zhang-ke, onde temos o escopo existencial fermentado
por uma condição que apenas está na tela.
Em A Estrada, a China é um dado enciclopédico,
uma adição de informação para embalar
o que está em jogo aqui, que é o romance púbere.
Gozado
como esse Globo Repórter em 1:85, Meu País em
Ruínas, dialoga com O Grito das Formigas. É
um bom registro sobre as atrocidades norte-americanas no Iraque,
mas, até aí, de que adianta isso se as imagens não
criam sentidos maiores, não vasculham as contradições
que surgiram ainda mais ferozes após a invasão?
Seguindo a tendência do new journalism (que a Globo
vem fazendo há algum tempo, mas que existe há tempos
lá fora), o filme pega um grande personagem que conduzirá
o filme: um médico sunita. Ele é quem solta a grande
frase do longa, que bate na tese de Makhmalbaf sobre a religião
ser um narcótico que embaça a desgraça humana.
Dr. Ryadh diz que a religião (o Islã, no caso) não
promove a guerra, a matança e a miséria; promove,
sim, a justiça. Essa é a afirmação
mais forte num filme que segue a pauta jornalística, jurando
honrar o compromisso com a verdade dos fatos, apontando os crimes
de guerra dos americanos. Mas, sem imagens cinematográficas,
tudo fica jogado, esquecível quando se entra na próxima
grande fila da mostra. Mas, até aí, Michael Moore,
gênio no balé das inserções de imagens
com a manipulação, também não chegou
ao osso do governo Bush. O cinema, enfim, não tem de cumprir
papel além de mostrar imagens. Imagens, claro, de preferência
enquadradas e com assinatura.
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