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Les amours d’Astrée et de Céladon, de Eric Rohmer (França/Itália/Espanha, 2007)
por Paulo Santos Lima

Imagens para serem tocadas

Eric Rohmer, aos 86 anos, não busca mais a imagem ideal. Ele já a encontrou, desde os seus primeiros filmes nos anos 60. Imagens como a de uma praia, de uma ninfeta, de um sol dando o contorno exato dos seres, de um raio ao limite da linha oceânica, uma perna, um lábio, um beijo de casal. Rohmer encontrou também a palavra, essa construção humana que desvirtua a leitura e o sentido das coisas do mundo. Por mais que a palavra possa reencontrar as coisas, sempre ficará um abismo entre o que é e o que é dito. O amor é outra força presente nos filmes do cineasta, e, como todo sentimento, repete às vezes da palavra incerta uma vez que distorce o factual da imagem.

Em seus últimos filmes, Rohmer não só reabre o fosso que separa a imagem de sua apreensão como chega a um fato mais escarlate: de que a imagem pode negar ou contradizer outra imagem. No caso de Les Amour d’Astrée et de Céladon, mais dramaticamente, um plano de imagem mal lido nega o acesso à “Imagem”. O acesso que vai além da visão, é também o do toque – e o que o cinema faz senão levar sua câmera a “tocar” as coisas do mundo? O que é o amor senão a vontade de tocar o desejado? O cinema de Rohmer ama, enfim, e nada mais justificável do que, com quase 50 anos de ofício, ele retome com veemência questões como a da verdade da imagem, ou a Verdade em si, que é sempre deturpada pelo caminho.

A tal Imagem, no caso, seria a de Astrée (Stéphanie Crayencour), mulher de uma beleza emocionante, equilíbrio total de cores e formas, uma síntese da idealização e da concretização – Astrée é para ser vista e também tocada. Céladon (Andy Gillet) não fica atrás, mas ele é quem terá de se privar da imagem total de sua amada. A moça vê uma cena que a faz acreditar que seu amado a traiu beijando outra – uma inverdade que as palavras só piorarão, inclusive com ela decretando que jamais quer ver Céladon novamente. Em desespero, ele se joga à morte no rio de águas tumultuadas. Por sorte, é salvo por belíssimas ninfas, mas, restabelecido, em vez de embarcar nas graças de uma ou algumas delas, ou seguir em frente, refugia-se na floresta e cria um pequeno templo idolatrando Astrée, a deusa homônima, através da imagem da sua Astrée – mantendo seu contato a ela apenas ao nível da iconografia e idolatria.

Se uma imagem faz descrer no outro, outra imagem retoma a confiança. Astrée descobre que Céladon jamais a traiu quando vê inscrita numa árvore uma declaração de inocência e de amor talhada por ele. Vejamos bem: quando ditas, as palavras ganham corpo nas cenas rohmerianas, mas não uma imagem (pelo contrário, elas embaralham o acesso direto às coisas apresentadas pelo plano); mas ao surgir graficamente na tela, o que é mensagem torna-se imagem... e, pronto, Astrée toma consciência do erro e se desespera pela morte ignóbil de seu Céladon. Estamos, aqui, numa série de desencontros digna da cinematografia de Rohmer, mas trazendo algo inédito, sobretudo se voltarmos ao filme anterior do diretor, Agente Triplo (2004). Ali, Fiodor, um exilado russo, às vésperas da 2ª Guerra Mundial e do conchavo entre alemães e soviéticos, traz em seu discurso oral uma teia que torna impossível o acesso a ele, tanto por parte da esposa quanto do espectador. São falas que cooperam para o seu próprio apagamento no filme, o que, de certo modo, ocorre ao final com um desfecho estanque em que simplesmente some com Fiodor da história, ou seja, dá sumiço à sua imagem.

Já em Les Amours d’Astrée et de Céladon, um dos filmes mais iluminados de Rohmer, com cenas apenas diurnas e externas (nas poucas internas, generosas janelas tratam de iluminar astralmente o espaço), alvura de peles, roupas e ambientes, Céladon é literal sobre o que fala e ouve. Uma vez que a sua Astrée lhe diz para sumir da alça de visão dela, ele levará isso a cabo, inclusive reencontrando-a, observando-a ao longe e não pretendendo chegar à vista dela. Ao contrário de tantos outros personagens de Rohmer, Céladon (Astrée, também) é transparente, com intenções perfeitamente claras e diretas, sem meios tons, sem joguetes. É de uma clareza bressoniana, mas cujo interior fica à vista. E tudo o que Céladon falar não terá intermediações ou anagramas – será como o discurso da verdade.

Isso explica a escolha de Rohmer em adaptar um romance pastoral escrito no século 17 e ambientado em momento anterior, “básico”, cuja pureza transpirada pelos campos, pastos, rebanhos e natureza inspira uma idéia de estado de verdade e pureza. Será essa imagem de pureza que dará respaldo às ações de Céladon e Astrée, e que demonstrará a boa causa dos amantes no desenrolar dos acontecimentos. Essa base clara, pura, é fundamental para o que ocorre no terço final do filme. Neste momento o filme estará, mais que nunca, ao lado de Céladon, algo confirmado na subjetiva de quando ele reencontra Astrée dormindo na relva e passeia os olhos por seu corpo, avistando a perna descoberta em posição bastante convidativa ao amante (e a qualquer homem que ali passasse). É um raro momento de silêncio, em que o som da natureza acompanha um exercício que é do olho da câmera e do homem (do homem Céladon, mas, sobretudo, do homem Rohmer). E daí, dessa imagem fantástica, surge a questão: do que vale uma imagem se não é possível tocá-la, acessá-la além dos olhos?

Essa pergunta é crucial para o cinema de Rohmer. Se sua estética sempre nos trouxe objetos a serem contemplados com os olhos, jamais houve uma construção fetichista dos planos. Rohmer usa um cinema direto, em que os efeitos fotográficos são presentes, mas ao nível da sobriedade. Há o recorte do quadro, mas interessa mais o que está dentro dele do que os seus limites fronteiriços com o extracampo. A imagem, assim, é para ser vista, claro, mas merece um acesso maior. Aí surgem a palavra, as interpretações e as ações que os personagens fazem a fim de conquistar seus amores, e que aproximam alguns filmes de Rohmer dos thrillers, tamanho o suspense criado em torno do happy end desses personagens. Pois Céladon deixa um pouco de lado o estoicismo e adere às artimanhas malandras, às enganações marotas. Disfarçando-se de filha do padre local, ele torna-se “amiga” de Astrée, e pode ficar a observá-la, tocá-la até, na tal cumplicidade tátil comum às mulheres. Ele, que jamais a traiu e tentou apagar sua presença atirando-se num rio, travestir-se para enganar os olhos de Astrée? Como pode isso? Talvez a consciência de que o culto à amada era pouco diante daquele corpo repousando na relva orvalhada de uma manhã no campo. E, se os olhos de Astrée a enganam facilmente, será no toque, no encontro físico efetivo, que a verdade virá radiante à tona.

Todo o percurso traçado em Les Amour d’Astrée et de Céladon, com sua clareza absoluta de enunciado trazida por uma das mais solares imagens do cineasta, constrói um fundamento sobre a razão de se chegar ao encontro com as coisas. Isso já fora tratado em A Inglesa e o Duque, naquelas recriações de quadros que deixavam à vista a natureza reprodutiva daqueles fundos, comprovando a impossibilidade de acesso à experiência real daqueles dias da Revolução Francesa – revisitando uma discussão que Alain Resnais tratou nos anos 50 e 60 –, mas agora vai-se à gênese teórica dessa necessidade do toque. Se isso sempre esteve menos ou mais ao longo da filmografia de Rohmer, é certo que agora ganha mais corpo, justamente após Agente Triplo provar a anulação da imagem pelo falseio mental do discurso das palavras. Assim, antes havia um jogo instável e interessante entre o real e o lido, ao passo que agora torna-se vital chegarmos a uma imagem fundamental, a uma imagem que esteja junto à real ação capturada pelo plano, à imagem cinematográfica: a Imagem em si. Rohmer avança pelos anos 2000 compreendendo que a ambigüidade da imagem pode causar danos terríveis num momento em que tudo se relativiza. E não há como ver Les Amour d’Astrée et de Céladon com meios olhos, meios tons. Estamos diante de um filme total.

Outubro de 2008

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