in loco - cobertura dos festivais

Antes que Eu me Esqueça (Avant que j'oublie),
de Jacques Nolot (França, 2007)
por Eduardo Valente

A comédia da morte

E se João César Monteiro fosse gay e francês? Bom, entre outras coisas, ele certamente não seria o João César Monteiro, mas ainda que este fato inegável por si só praticamente invalide a comparação, é impossível não pensar no português endiabrado ao vermos este filme de Jacques Nolot, que é o primeiro dele como diretor a ser exibido no Brasil. Primeiro de tudo, pela própria presença do diretor como protagonista do filme, encarnando uma figura que se confunde com sua própria persona; depois pela maneira pouquíssimo convencional com que esta personagem/persona filma seus encontros e conversas com outros personagens, muitas vezes girando em torno de uma pulsão sexual nada pudica; e finalmente pela própria presença na tela deste corpo envelhecido e frágil, tornado tão mais potente pela força e vivacidade das palavras que saem de sua boca.

Com mais de 30 anos de carreira como ator, principalmente nos filmes de André Techiné (mas também tendo trabalhado com Claire Denis, Patrice Leconte e Luc Moullet, entre outros), Nolot completa com este seu terceiro longa uma auto-declarada trilogia. Embora nenhum dos três filmes (os anteriores são L’Arrière-Pays, de 1998; e La chatte à deux têtes, de 2002) se conecte com os outros por meio de suas tramas, a relação direta com a própria vida de Nolot forma o ponto de conexão – e nos três ele surge em cena como um alter-ego ficcional de si mesmo, de sobrenome Pruez (e, de novo, nos lembramos dos João de Deus monteirianos).

Antes que eu me Esqueça tem início com a curiosíssima imagem de um ponto preto no meio de uma tela branca, que vai lentamente crescendo até tomar toda a tela. Em seguida, dois homens de idade aparecem em frente a um jazigo comum recém-adquirido num cemitério, comentando as vantagens de seu futuro “abrigo” naquele lugar. Em seguida, vemos as dificuldades de Pruez/Nolot em dormir uma noite completa de sono, acordando no meio da madrugada com ânsias de vômito e tomando comprimidos – ainda assim só caindo mesmo no sono pela manhã, no sofá. Pela descrição destas primeiras cenas, podemos perceber que o filme trata-se de um mergulho no inexorável buraco negro da decadência física humana rumo à morte, mas tal processo, como descrito por Nolot, não se dá sem considerável humor (negro, obrigatoriamente). De fato, talvez essa história de um ex-gigolô homosexual, soropositivo há 25 anos e atualmente vivendo com o drama da chegada da velhice, possa mesmo ser vista desta maneira: a divina comédia da caminhada para a morte e as tentativas dos homens de lidar com ela.

O filme se estrutura a partir de uma série de encontros de Pruez/Nolot com outros personagens (jovens garotos de programa, ex-amantes, colegas de “trabalho” gigolôs do passado, o psicanalista) e de cenas dele em casa ou pelas ruas de Paris, em pequenas e banais ações. Em todos estes momentos, somos levados a acompanhar este personagem sempre dúbio, que não conseguimos saber quando está mentindo ou não em suas conversas, e que trata de dinheiro e de relações pessoais e amorosas com uma mesma falta de “dedos” impressionante. O que mais impressiona, talvez, seja a maneira controlada e sutil, porém inegavelmente certeira, com que ele vai tornando aquilo que no começo é para nós tão somente um corpo em sofrimento num personagem multifacetado, de quem vamos conhecendo traços do passado, das relações, do pensamento, do presente, sem nunca sabermos o suficiente para estarmos “acima” dele.

Desde o começo do filme, Pruez afirma que “não tem vontade de nada” e que o suicídio é uma das opções que considera; seu amigo de conversas vespertinas, porém, diz sempre que ele está “em plena forma” enquanto seu psicanalista o recomenda que vá encontrar um garoto jovem que cuide dele. É nessa toada que Nolot monta seu retrato da vida cotidiano de seu personagem: amargo, ferino, mas profunda e dolorosamente humano.

Talvez tenha sido o filme que mais sentido deu, desde sempre, ao nome da mostra em que foi exibido no Festival (Mundo Gay) – mas provavelmente o público-alvo da mesma não gostaria de concordar com isso.

Setembro de 2007


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