in loco - cobertura dos festivais

Canção de Baal, de Helena Ignez (Brasil, 2008)
por Paulo Santos Lima

Uma canção única

Helena Ignez, a maior atriz brechtiana de nosso cinema, assina finalmente a sua primeira direção de longa. Isso não significa pouco, muito menos uma realização pessoal. Há todo um posicionamento artístico de alguém que esteve no mesmo front de artistas geniais e únicos, como Sganzerla e Glauber; ou, ainda recentemente, junto à obra singular de Bressane. Ver, portanto, Carlos Careqa de pé, fazendo música no teclado de um piano, a câmera correspondendo a seu objeto “libertino”, rodeando-o ao mesmo tempo em que registra o homem com o sol deixando sua marca reflexiva na lente, é uma imagem de expressão. E sabemos o que significa, hoje, “expressar” algo – é ruir imensos diques estáticos.

O que mais impressiona neste Canção de Baal é, certamente, o princípio criativo de Helena Ignez estar na ponta da imagem. Ela não apenas reprocessa o célebre texto Baal, de Brecht: ela vai até a gênese do criador. No caminho, avista toda uma cultura que roubou os centeios artísticos dos campos para transformá-los em senso comum e funcional. E é aqui que, certamente, a diretora reverencia o pensamento de seu grande amor, o marido Rogério, retomando na própria síntese deste filme uma discussão que o cineasta tomava pelas rédeas nos anos 60, contra a idéia de uma cultura nacional. O filme de Ignez é uma expressão única, não necessariamente atendendo a formatações, códigos e gramáticas de um “fazer arte à brasileira”.

O Brasil está ali, na tela, pelo fato de ter sido rodado por aqui, sob condições materiais idem e assinado por uma nativa cuja vivência está sobretudo aqui. E é por isso que, por exemplo, podemos ouvir, ainda no prólogo, a voz de Bertolt Brecht, cujo pensamento é uma herança fortíssima no nosso ocidente – o das guerras, atrocidades e recriações fecundas das cinzas. A dialética criada nesse início, no qual temos Brecht depondo, em inglês, ao Comitê de Atividades Anti-Americanas (uma das barbáries dos nossos tempos), e Baal/Careqa em irreverência total sobre o teclado preto-e-branco do piano, significa um posicionamento junto à irreverência. Afinal, como combater este crime que impôs a Brecht falar noutra língua numa situação bestial senão com a quebra de qualquer código de conduta?

Em princípio, como confirma a própria diretora, o Baal do filme não era pra ser necessariamente um ser dionisíaco, mas, sob o humor da própria estética livre, não há como não revê-lo como o homem que traz as cores e luz àquele cenário, que traz a desordem a fim de celebrar a vida. O discurso, teórico e visual, é bastante caudaloso, e por isso é incontornável percebermos que há também uma pulsão de destruição em Baal. Ao mesmo tempo em que prefere os amores a comer e beber (como ele próprio diz), ele também revelará a ferida dos tempos, o caos que o empurra à agressão, ao poder (sobre as mulheres, sobremaneira) e à própria mise-en-scène. Rica correspondência aos filmes “fim de mundo” de Sganzerla, que se coloca na tela numa leva de imagens arrasadora, de cores fortes, contrastes, cenários e vozes teatrais capturados por uma lente de cinema que decupa os espaços, utilizando o digital quase como forma política, como Godard o fez em seu Elogio do Amor: um tanto como “ferramenta a serviço de algo”.

Seria um filme pós-moderno, na varredura aspiradora que faz de signos de nossa cultura e pensamento (cultura sem aspas, aquela que surge viva da natureza do homem), no reprocessamento, mas é um trabalho em busca da liberdade suprema, em busca da transcendência sobre o nosso tempo. Não é uma fuga, portanto, mas sim a superação da barbárie – às vezes, pela própria barbárie (ou não é assim que o senso maquinal intitula experiências que saem da teia convencional?).

Ainda sobre a busca, este é um termo bastante apropriado. Posicionando-se firmemente, Helena Ignez está a se afirmar no mundo, mas não afirmando algo além de um modo de estar. Ela e o filme, assim, procuram por algo, assim como Baal o faz, deitando-se com várias pequenas, cortejando da mundanidade à majestade, ou a fusão disso. Ou seja, entre as mulheres viscerais e a imagem ideal (de Djin Sganzerla), e aquela que funde os mundos (Simone Spoladore). Não por menos, a personagem de Spoladore surge sensual e pictórica, referente à arte visual e à carne real, e recolocada em águas cinematográficas, com sua imagem encontrada na água que não deixa de ser como uma tela de cinema. É também, aqui, a fusão suprema do teatro e do cinema.

As músicas reprocessadas, como Tico Tico no Fubá saído da boca de Carlos Careqa, na cena em que Spoladore surge nua para as águas de uma cachoeira, são algumas das camadas de imagem-áudio que trazem informações profundas (neste caso, não há como dissociar esta belíssima imagem da literatura romanesca, ou de uma versão erótica dos quadros positivas). A presença de Einstein, refeito por ator, para comentar sobre índices de nossa cultura, é um achado, mas que faz todo o sentido nessa idéia de travessia por todo o imaginário de um país, suas artes, sua cultura, sua “cultura”, seu pensamento... seu drama. No curto-circuito desta viagem de coleções, onde Baal vocifera, desdenha do sistema e cria machucados ao seu redor, há respiros soberbos. O principal deles talvez seja um dos mais cinematográficos do longa: a imagem de Djin revelada em reflexo com folhagens ao abrir de uma janela aberta; linhas geométricas de um rosto em casamento com o movimento da vida, o verde do mundo. Ou o enquadramento que, pegando quase de lateral o rosto de uma cantora, a coloca em diálogo com uma natureza a ser celebrada.

Impressiona muito como Canção de Baal consegue, nessa viagem sem fim, migrar infinitamente entre o confinamento do cenário teatral e as enormes pradarias naturais registradas em profundidade campo; entre o anti-naturalismo do teatro e o ilusionismo do cinema; ou fazer colidir tantos elementos a ponto de criar algo único, que passa pelo lúdico sem tirar os olhos da severidade – o mundo está em perigo, enfim. Mas Baal, que empurra Carlos Careqa a ser um Tom Waits (viagem transcontinental, transcultural), um clown ou um Don Juan, firma a voz e diz que a imaginação é mais importante que o conhecimento. Parece, assim, que o mundo, ou a vida (no caso da própria atriz-diretora), está a serviço do filme. E uma vida não é igual a outra. Daí Canção de Baal ser um filme tão único, tão singular diante de um oceano de formatações âncoras. Uma obra de resistência que carrega menos uma resposta sobre hoje e mais sobre toda uma vida. A vida de Helena.

Outubro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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