in loco - cobertura dos festivais

Vício Frenético (Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans!),
de Werner Herzog (EUA, 2009)

por Filipe Furtado

De falso remake a filme da Millenium

Vicio Frenético não é realmente um remake do filme homônimo de Abel Ferrara. Aliás, sequer é uma releitura muito própria, como o Planeta dos Macacos de Tim Burton. É só um produto que divide o nome com o filme de Ferrara, porque os produtores tinham os direitos sobre ele, e a noção (mesmo que falsa) de um remake de um filme cult parece ser mais vendável que só a de um filme sobre um policial fora de controle (um pouco como a não rara prática de comprar direitos sobre livros e usar pouco mais que seu título). Há sim um par de cenas inspiradas em momentos do filme de Ferrara, mas se este aqui tivesse qualquer outro título ninguém faria a conexão entre eles. Ainda assim, esta posição falsa de remake não deixa de dizer muito sobre este filme de Herzog.

Quando do lançamento de O Sobrevivente, primeiro flerte de Werner Herzog com o filme B, críticos como Bruno Andrade e Francis Vogner apontaram que se tratava quase de um “filme da Cannon”, em referencia à produtora de filmes B dos anos 80. Pois bem, Vicio Frenético é um “filme da Millenium”, produtora que mais se aproxima desta idéia de filme B hoje, geralmente a partir de um formato bem engessado (filmes com ganchos de gênero, estrelas envelhecidas, orçamentos controlados, feitos sobretudo com o mercado internacional e o de DVD em mente). As Duas Faces da Lei (também conhecido como “o filme do Pacino e DeNiro”) é o exemplo mais bem acabado do que seria um “filme da Millenium”. Poderíamos até ignorar todo este contexto de produção, se ele não fosse tão pronunciado no filme: se O Sobrevivente era um filme de Herzog que brincava de ser uma aventura barata na selva, Vicio Frenético é um policial quase direto para DVD com inflexões herzogianas. O DNA da produtora por vezes parece muito superior no filme ao do cineasta alemão (mesmo a atuação excêntrica de Nicolas Cage, a principio tão herzogiana, tem contraponto no seu trabalho no remake de Neil LaBute para Wicker Man, outro filme da produtora).

O maior interesse de Herzog no filme está explícito no seu subtítulo original (Port of Call New Orleans): a paisagem de New Orleans pós-furacão Katrina. No seu melhor, Vício Frenético faz pouco mais que observar suas locações e tirar delas sua força. Herzog sempre teve um olhar de documentarista muito superior aos seus instintos dramáticos e não surpreende que, mesmo nesta mais convencional das suas ficções, encontre um ponto de fuga justamente na observação documental. É uma pena que ele force a questão ao criar o paralelo entre o policial de Cage e a cidade, ao colocar as origens da sua decadência física/moral na decisão de ajudar um preso que arrisca se afogar na cadeia inundada durante o furacão. A principio isso não seria um problema, caso o filme tivesse um foco mais firme, mas o personagem de Cage não sustenta o paralelo, e lhe dar tal origem dissipa o potencial da sua trajetória ao longo do filme.

Por todo o olhar para região e o visível contentamento de Herzog de permitir que seu astro engula tudo a sua frente cena após cena, Vício Frenético jamais consegue dar o salto para ser mais que um policial medíocre. Seu centro é rotineiro demais, e as excentricidades de suas extremidades parecem excessivamente calculadas para disfarçá-lo. A abordagem de Herzog frente a posição de diretor de aluguel soa por demais cosmética, faltando-lhe o investimento para encontrar sentido no material. Algo reforçado na parte final do filme, onde primeiro a trama nominal se resolve sem impacto algum e depois as seqüências onde Cage reencontra o homem que salvou no começo nunca registram da forma como deveriam. A verdade é que Vício Frenético parece espectador de si mesmo, incapaz de dar corpo ao seu drama e incapaz de escapar da sua posição de produto. A tragédia de Vicio Frenético não é ver Herzog gastando seu tempo com o que seria “um reles remake”, mas tentando não se afogar enquanto conduz um “filme da Millenium”. Há grandes cineastas que têm o temperamento para extrair o melhor de tal situação, mas a Herzog cabem apenas as margens da tela. É evidente que Vicio Frenético possui uma inteligência (seja visual, seja de idéias) que eluda um As Duas Faces da Lei, mas seu centro é tão corrupto quanto.

Janeiro de 2010

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