Baixio das Bestas, de Cláudio Assis (Brasil, 2006)
por Felipe Bragança

Culpa da beleza

Baixio das Bestas
é um objeto cinematográfico interessado em perversões. Perversão no sentido mesmo da desestabilização de uma certa ordem de coisas da qual se define um status quo e uma possibilidade de inversão de valores, colocando-se em um "lado de fora" da ordem. Note-se: não me interessa aqui falar de contundência, mas de cinema. Do que se compõe em imagem e de como ocupa a imagem.

Até que ponto, então, esse desejo de perversão consegue se realizar como desejo primeiro ou de que forma ele não se distancia do corpo do filme se tornando um objeto de intenção? Baixio das Bestas carrega esse dilema como cerne: o desejo, a perversão do corpo, a violência do corpo é elemento componente ou objeto-status quo observado? O fetiche pelo corpo nu, pela violência do corpo é algo que interessa a Cláudio Assis como estatuto-expressividade estética ou como dado cultural? Não há, aqui, atentemos, uma preferência por este ou aquele caminho – apenas a observação de que a forma como os corpos são gerados em cinema parece ter um dilema essencial que não consegue se exprimir nesse segundo longa-metragem de Assis: falar do desejo e da violência pela imagem ou desejar violentamente uma imagem?

O sexo, como ato ou como tensão do ato, neste segundo filme de Cláudio Assis, aparece novamente como negatividade instintiva (assim como já acontecia no semi-rodriguiano Amarelo Manga) mas em Baixio das Bestas aparece agora não mais como espécie de condição existencial (de uma certa poética amarelada do Recife) mas como dado cultural-social da decadência moral-econômica de um "universo" naturalista. As “bestas” do filme, os proto-personagens todos, agem e reagem levados por encenações de instintos e atuando posições sociais em que correspondem a uma certa lógica-painel de um sentimento/projeto comum de um mal-estar vistoso, expressionista.

A poética do filme se localiza, portanto, na forma como a câmera e a luz de Assis-Walter Carvalho vai circular por esse conjunto de situações sintomáticas, nessas funcionalidades cênicas. Repetindo melhor: há uma desarticulação entre o sentido das cenas e dos sentidos em cena. De alguma forma, diria, um naturalismo festivo. Se de alguma forma o que se filma parece ser querido como gestos de negatividade, por outro, a imagem, idolatrada pela câmera, parece colecionar uma iconografia, um gestual do belo no que se nega como vivacidade.

Culpa da beleza. Essa talvez seja o maior efeito estético do cinema de Cláudio Assis até aqui: suas imagens, excitadas, parecem culpadas pelo prazer que sentem diante do que o sentido dramatúrgico quer localizar como negação da beleza. A bestialidade do filme não parece ser vivida pelas imagens, mas sim culpabilizada, dolorida, recalcada por elas. O sexo não se encontra ali com o prazer, com a explosão de sentido corporal, mas se dá sempre como uma certa moralidade desviante a serviço de um estado de alma desassossegado. Dessa forma, a bestialidade do filme (e sua suposta vertente naturalista) se torna falsa, engessada, quando se submete a um jogo, um conjunto de desejos de poder, de dualidades de sentimento, que não apontam para a liberdade do bestial comportamental. Muito menos para uma suposta “liberdade do cinema”.

Baixo das Bestas é todo ele, uma paixão triste, culpada, engessada por uma espécie de vibração, de roçar - um masturbar de uma imagem que não quer dizer seu nome, que parece não se ver como ato vivaz em si mesma.

A busca por uma certa coloquialidade nos diálogos, interpretações "soltas" e algumas composições de quadro que indicam uma casualidade dos gestos encenados – se tem resultados coerentes e virtuosos isoladamente – parece se localizar como uma equivocada cama, uma muleta cênica para uma referencialidade cotidiana – um falso "filme de personagens e espaços" que na verdade não consegue, ou não quer mesmo conseguir, deixar de ser um filme de imagens-enunciados e esquetes-alegóricos.

Penso na perversão gráfica e no prazer desgovernado presente em alguns momentos de Pasolini, ou ao reverso, na frieza animalesca dos bichos de Bruno Dumont: Cláudio Assis parece não ter se definido ainda, ou melhor, composto ainda uma indefinição consistente, para a natureza mesma das suas imagens. A câmera vê, a câmera vomita imagens. Entre a observação, a coloquialidade e a declamação gráfica de efeitos de câmera (a fotografia vultosa de Carvalho é sempre uma faca de dois gumes), é interessante que o cineasta procure uma verdadeira natureza/qualidade, não daquilo que ele olha, mas daquilo que é seu olhar.

A imagem como perversão do mundo ou a imagem da perversão do mundo? O Prazer do corpo ou o desejo discursivo? O estilo como desejo dos corpos ou como fetiche do diretor? Não à toa, as imagens do mexicano Carlos Reygadas (Japón, Batalha no Céu) vem à cabeça: um certo querer o choque como religião (e não como ética); o mal-estar como antídoto do desejo negativizado, as iconografias sociais psicologizadas da degradação cultural (a questão do maracatu comercializado e das procissões humilhantes de Batalha no Céu se cruzam) servindo antes ao fetiche do estilo, ao gozo do estilo. Uma forma de olhar que não se liga aos corpos filmados, mas se desliga deles e se mostra superior, avesso, "de fora" (per-verso), maquinando um espanto cinematográfico mais ideológico do que físico.

“Ou come ou sai logo de cima!” – a expressão popular tosca talvez defina de maneira mais direta o dilema que me parece estar nas entrelinhas do desejo de imagem em Claudio Assis:

Olhos para baixo, para “Baixio”, é um cinema em que a carnalidade incomoda, não vive – e não vivendo, não sonha.  E em que os olhos, nossos também, ficam procurando fogaréus, coisas bonitas, chuvas vistosas, cores em movimento que Carvalho nos supre, movimentos de câmera que nos redimam, que nos deliciem com alguma beleza num fora-dali que simplesmente abandone aquele mundo (como a fossa-cova filmada em extremo plongée apontado ou a "liberdade" do olhar de Matheus para a câmera sugerem uma fuga de território, um céu sem cinema).

Fica aqui, então, o interesse por se pensar um cinema em que a estrutura do desejo esteja na mesma pele que se filma.  Não em contraponto ou em composição social-culturalista e, muito menos, como elemento moral de contra-poesia ou contra-moral. Toda poesia é sempre a favor de seu estado de alma. A favor de que a poética Assis aponta sua liberdade? Até segunda ordem, sua cinematografia se desenha com um canto do desamparo e da tristeza da IMAGEM diante de sua impossibilidade de compartilhar prazer, somente de tomá-lo a força (!) não como uma afirmação do ser, mas como sublimação do que este recalca. Um filme católico, antes de tudo.

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