admirável mundo novo
Dramaturgia do constrangimento: os novos "barrados
do BBB" por Ilana Feldman
Parte 2: "Barrados" e legendados
Como
uma atração dos primeiros tempos do cinema, quando números circenses misturavam-se
à pornografia, os vídeos dos “barrados no BBB” vêm com uma legenda-chamada produzida
pelo site. “Tem até gelatina querendo entrar”, diz a legenda ao lado do close
de uma bunda feminina não-“turbinada”. A baiana Givanilda, de biquíni esgarçado,
“mostra o que tem e o que não tem”. Já com Maria, empregada doméstica, a legenda
é mais delicada: “Hoje não foi dia de Maria... Maria é uma diarista muito charmosa,
mas a produção não adiantou e ela sobrou”.
Na maior
parte dos casos a legenda chama atenção por sua agressividade e violência, como
no caso da candidata Isabel, cuja chamada grita: “Alguém joga um balde de água
fria nela!” ou no caso de Mônica, “Ela pensa que está num ensaio para o Paparazzo!”
ou, ainda, no caso de Lucia, “Dançarina profissional... ‘Magra’ desse jeito? Lucia
mostra sua dança ‘sensual’ e profissional, mas uma academia não faria mal, né?”.
Possivelmente, a legenda mais grave seja a que classifica patologicamente um personagem
que questiona os critérios de seleção do Big Brother: “Tarciso, você precisa de
terapia. Na tentativa de entender os critérios de seleção, ele demonstra vários
sinais de esquizofrenia”. Paradoxalmente,
a condição de “Barrado do BBB” implica uma outra forma, não raro perversa, de
visibilidade. Estão lá, disponíveis, as imagens dos candidatos das “margens”.
Habitam o site do BBB, onde fazem suas performances amadoras: rebolam o “popozão”,
“pagam peitinho”, se fantasiam de modo cômico ou erótico e exteriorizam suas precárias
retóricas, a partir das quais a realidade, em sua excessividade e crueldade, bate
à porta. O que constrange é muito menos a exploração do corpo do que a colonização
do imaginário por desejos e sonhos homogeneizados e previamente formatados. O
que constrange é o fato de sujeitos tão heterogêneos, singulares e múltiplos –
que estabelecem relações diversas com os discursos hegemônicos e midiáticos –
demandarem ser assujeitados, como quem implora ser normalizado e pertencer
a uma categoria, a uma identidade e a um mundo pronto, cujo sentido seja unívoco
e já esteja dado. Tudo é, então, literalmente desnudado
através da forma vazia da precariedade, inadequação e fragilidade, forma que compreende
gestos, falas, enquadramentos, texturas e movimentos de câmera. Forma que ao fazer
do sujeito uma coisa informe, revela sua irredutibilidade, como se o corpo que
suplica ser compreendido pela imagem resistisse, ambigüamente, a ela. O que significa
que a forma vazia não é apenas a forma-imagem, mas a forma de uma construção performativa
de identidades que parece aceitar, dissolver e neutralizar qualquer conteúdo.
Daí, a impossibilidades de resistência dessas imagens que destoam, insubordinadamente,
do padrão; daí o fato dessas imagens serem, não de resistência, mas fragilmente
resistentes. Também em muito dos vídeos de candidatas tem-se
a impressão de que o desejo de participação, e do prêmio milionário, é secundário
face à vontade de conhecerem ao vivo o apresentador Pedro Bial. Elas clamam por
ele, e o interpelam suplicantes, como se Bial, em sua figura paternalista, fosse
a personificação divina do olhar total e onividente do Big Brother. Nesse sentido,
é exasperante a indeterminação do olhar que mira a lente da câmera à procura desesperada
de um interlocutor: seria o Bial, o Boninho, a Globo ou mesmo Deus? Afinal, qual
dessas instâncias é identificada ao Big Brother? Outras vezes, porém, os olhares
fogem do visor da câmera, que como que envergonhados, constrangidos. Em
grande número dos vídeos dos “barrados” vistos, o movimento de câmera mais recorrente
é o close, a partir de um mesmo posicionamento de quem filma – bem diferente
dos vídeos, supereditados e decupados, de cenas extraídas de dentro da casa –
e o uso de trilha sonora, onde a apresentações de números musicais por parte das
mulheres, dos homens e de algumas drags é imperativo. Alguns vídeos, na
tentativa de chamar atenção pela criatividade, acabam escapando, de modo curioso,
da prisão do discurso biográfico à beira da cama ou, sintomaticamente, ao lado
da televisão da sala. Trocam o momento confessional por outros recursos ficcionalizantes:
montagem narrativa de fotos biográficas, inserção de animação, adaptação do clipe
“Black and White” do Michel Jackson, paródia do Jornal Nacional e do que é ser
uma celebridade, promessa em escadaria de igreja, dança do ventre com, e sem,
serpente. Sobre este último, a legenda comenta: “Até que a cobra é fotogênica”. No
entanto, as estratégias paródicas são esvaziadas de qualquer potencial crítico,
já que se a motivação inicial pode ser diferente, ou menos ingênua, o efeito almejado
é simplesmente o mesmo, pois bem sabemos não ser possível “comentar criticamente”
o primado da visibilidade enquanto se demanda pertencer a ela. Nesse sentido,
os vídeos paródicos querem ser tão mais incorporados, porém destacados da multidão,
como se o artifício da paródia fosse uma forma de produção de “distinção” nesses
meios audiovisuais. Mais uma vez, tem-se aí uma forma vazia que, no limite, porta
a negação dos conteúdos que ela mesmo evidencia, como se o poder risse de suas
próprias injunções através do selo da ironização. Não à toa,
o recurso da ironia e do deboche presente nas legendas-comentários é bastante
eficiente na tentativa autoritária de enquadramento, identificação, categorização
e condenação moralizante das condutas e das formas de apresentação pessoal dos
candidatos ao milhão. Assim, o que poderia à primeira vista ser percebido, no
âmbito do site, como um esgarçamento do padrão de qualidade do “bom gosto” burguês
e da “distinção social”, revela-se como mais uma máscara da moralização. De fato,
a Globo não está alargando os limites do “gosto médio”, mas dando continuidade
a seu modo de operar socialmente, porém de outra forma. Condenados
por negligenciar formas culturalmente consentidas de apresentação da imagem dos
vídeos e de apresentação da imagem-de-si nos vídeos, os “barrados” servem, como
exemplo negativo, às estratégias de “democratização” de um ideal estético e asséptico.
Pois o que está em questão é, sem nenhum tipo de alegoria, um “projeto” (que não
se dá necessariamente de forma consciente) de seleção social e estética: determinismo
darwinista em nome da “boa aparência”, do “carisma” e do “padrão de qualidade”
requerido pela empresa. Porém, cabe ressalvar que tal imperativo protofascista
não se restringe aos ditames de uma única corporação. Antes, ele atravessa, capilarmente,
todo o corpo social, criando demandas de pureza, beleza e “limpeza”, demandas
de “lipoaspiração” da imagem e da viscosidade orgânica do corpo material que a
impregna. No entanto, se o enquadramento policialesco das
legendas, ao controlar, normatizar e instrumentalizar essas vidas, espécie de
vidas-banco-de-dados, adverte que não há fora do ideal estético preconizado, por
outro lado, essas mesmas imagens, tão dissonantes e indomesticáveis, curto-circuitam
a lógica do padrão, resistem a ele, condição que legitimará, paradoxalmente, o
próprio padrão estético, através de um contínuo reenquadramento - que é feito
não sem violência e com um autoritarismo dissimulado pelo deboche. Assim,
abre-se espaço para esses sujeitos que demandam assujeitamento, para essas imagens
cuja insubordinação foi administrada, mas para deixar claro que, se “eles” querem
pertencer a “nós” (Globo), nós não pertencemos a eles. Estratégia, aliás, próxima
a dos programas de calouros, como Ídolos, por exemplo, que fazem uso da
humilhação e do escracho, expondo, a contragosto, a arbitrariedade do próprio
padrão – arbitrariedade que conseqüentemente legitimará novas violências em nome
da manutenção desse ideal estético. Porém, tal violência
no uso das legendas só se faz necessária porque a administração da insubordinação
não dá conta de sua excessividade, de sua dimensão
incontrolável e daquele gesto último que escapa às tentativas de domesticação
e institucionalização. As legendas, como disse Cezar Migliorin, querem organizar
a “casa”, colocar os limites e lucrar com a diferença; as legendas querem estabelecer
um dentro e um fora, estabelecer uma espécie de diferença de natureza onde só
existe diferença de grau entre o padrão Globo e a estética dos vídeos dos “barrados”;
as legendas reconhecem seus filhos, mas apenas como bastardos, enquanto gritam
despudoradamente: Isso não sou eu!
"Redenção" A
“dramaturgia do constrangimento”, tão amplamente utilizada por apresentadores
de TV, programas de “pegadinhas”, “testes de fidelidade” e embutida nas estratégias
de alguns documentaristas “engajados”, não é necessariamente “do mal”. Em alguns
casos, naqueles em que há uma relação de poder menos polarizada, ela pode ser
um método de produção e catalisação do conflito. Porém, na maior parte das vezes,
as estratégias do constrangimento são legitimadas por pressupostos estéticos,
princípios padronizados, achatando qualquer possibilidade de confronto e minando
sua capacidade reativa como quem injeta, num corpo, uma substância paralizante. Compreender
a submissão voluntária e consentida à estratégia do constrangimento não é das
tarefas mais simples. De saída, o poder embutido neste tipo de tática é menos
coercitivo do que produtivo, pois investe, igualmente, os corpos e o imaginário
do constrangedor e do constrangido - os quais demandam, em intensidade equivalente,
consumir e pertencer a um mesmo mundo pronto, cujos sentidos já estejam garantidos.
Partindo desse pressuposto de um poder não-repressivo, podemos tentar entender
porque o desejo de pertencimento e inserção social legitima qualquer estratégia
de aparição e “objetificação” de si. Afinal, o que se ganha
em troca da deliberada “pagação de mico” e da exploração e exposição ao ridículo?
Das tradicionais videocassetadas à exibição de corpos completamente flácidos –
depois de 40 kg perdidos, por exemplo – em reality shows de intervenção
cirúrgica, como Extreme Makeover, o que se vê é a busca incessante pela
redenção através da imagem. Menos do que os tão citados “15 minutos de fama” previstos
por Andy Warhol, o desejo de aparecer associa-se, cada vez mais, ao desejo de
pertencer. O efeito-visibilidade, qualquer que seja ele,
pois sua lógica é quantitativa e não qualitativa, legitima todo o tipo de processo
pelo qual se é tornado visível. Isto porque a humilhação, estratégia-chave do
constrangimento, é redimida por sua exibição. E, como todos os constrangidos precisam
autorizar essa exibição, cria-se um pacto de aceitação da humilhação e de sua
difusão. Assim, atingindo-se a condição de “humilhado célebre”, a humilhação é
legitimada, e dignificada, como moeda-de-troca. A imagem, essa forma vazia que
independe de conteúdo, torna-se então um salvo-conduto moral que, contraditoriamente,
terá como efeito o resgate da auto-estima afetada do constrangido. Os
“barrados no BBB” bem sabem que servirão de matéria-prima para o riso anônimo
de milhares de desconhecidos e para a diversão geral dos amigos. Para muitos,
o constrangimento, de um achatamento existencial que reduz a vida à dimensão meramente
orgânica, é transformado em um momento de glória, como aqueles penetras que se
contentam em fazer performances diante dos seguranças de porta de festa. Lá de
dentro, o som grita impiedosamente o refrão da canção de Dusek: “Mas isso é que
dá, ‘cê querer freqüentar!” N. da R.: Agradeço a Cléber
Eduardo pela expressão-conceito “dramaturgia do constrangimento” e a Cezar Migliorin
pelo interesse e colaboração.
editoria@revistacinetica.com.br
|