in loco - cobertura dos festivas

Uma Barragem Contra o Pacífico (Un barrage contre le pacifique), de Rithy Panh (França/Camboja, 2008)
por Julio Bezerra

Cinema de qualidade

Filmar uma realidade é, antes de tudo, uma questão de como colocá-la em cena. Essa sempre foi a "fórmula" de Rithy Panh, um dos mais importantes e discretos cineastas da atualidade. Em um cinema que se debruça sobre a nação cambojana, seus filmes (S-21, A Máquina de Morte do Khmer; Uma Noite Após a Guerra; Condenados à Esperança etc), para além do documentário e da ficção, são intervenções encenadas em que nenhum procedimento é errado em si. Errados podem ser os motivos pelos quais eles eventualmente são usados, e o quão eficiente o filme se mostra ao empregá-los. Deste ponto de vista, Panh é de uma estranha coerência quando abraça um tom mais convencional, e espetaculoso quando, pela primeira vez, seu ponto de partida é o de uma matriarca francesa (Isabelle Huppert) e suas agruras num país desconhecido.

Baseado em um romance de Marguerite Duras sobre conflito de terras e corrupção moral, Uma Barragem Contra o Pacífico se passa nos anos 30, quando os franceses ainda davam as cartas nos arrozais do Camboja. A narrativa é melodramática. O registro é naturalista. Os atores são bons e bonitos. As direções de arte e fotografia (embora uma ou outra cena seja uma tanto desajeitada em sua decupagem e ritmo) são impecáveis. A ambientação e as locações também. Ainda assim, embora correto, Uma Barragem Contra o Pacífico soa frio e calculado. Vejamos o caso da natureza: ela está presente em toda a narrativa, Panh investe nela como uma questão estética. E ela vem sempre embalada em belezas pré-programadas. Em seu horizonte, essa atenção à natureza beira a distração e jamais funciona em uma chave sensorial. O longa de Panh mais parece uma ilustração daquilo que os "jovens turcos" da Cahiers du Cinéma chamavam de "cinema de qualidade". Qualidade esta que, como sabemos, era uma ofensa e não um elogio: um cinema que pregava a ostentação de valores de produção e de uma dramaturgia funcional e tecnicamente eficiente.

O que está em jogo mais uma vez são as memórias do Camboja, as pequenas estórias dos que nele sobrevivem a duras penas para compor a História do país. Os filmes de Panh remetem sempre de uma maneira ou de outra ao genocídio imposto pelo Khmer Vermelho. Para este cineasta, o tempo não é linear e homogêneo, algo como uma sucessão ininterrupta de acontecimentos indiferentes entre si. Seu cinema defende a possibilidade de romper este continuum da história dos vencedores. Esta talvez seja a maior incoerência de Panh em Uma Barragem Contra o Pacífico. Pois a História nunca foi tão pesada como aqui. Os personagens têm funções muito bem delimitadas, sejam eles franceses ou a massa uniforme dos cambojanos. Com uma ou outra exceção, este filme não dará vida a eles para além do "evento histórico" (não é baseado em fatos reais, mas é encenado como tal) que o interessa. O que se vê então é um determinado discurso sobre o passado colonial do país, acessado como apenas mais uma gaveta da história.

Assim, o longa carrega um gosto amargo, um certo discurso histórico e político anterior ao próprio filme e que se sobrepõe a ele. Panh, contudo, ainda tem fé no cinema. Os melhores momentos deste filme não me deixam mentir. Sempre que os personagens dançam em quadro, o cineasta transborda essa crença nas imagens, que lhe é tão característica. Para ele, o cinema é um meio privilegiado para se exprimir o maravilhoso, como se os rostos marcados, as mãos calejadas e a linguagem típica dos camponeses, dos soldados, dos colonizadores e dos colonizados fossem suficientes para encantar o público. Mesmo no ambiente de horror que seu cinema se insere, Pahn é capaz de nos fazer descobrir o fascínio pelo mundo e pela vida.

Outubro de 2009

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