Bastardos
Inglórios (Inglourious Basterds), de Quentin Tarantino (EUA/Alemanha,
2009) por Filipe Furtado Teatro
da barbárie
Os primeiros instantes de Bastardos
Inglórios sugerem um faroeste à Leone transposto para França ocupada, sobretudo
pelos elementos de cena: o fazendeiro a trabalhar, as filhas cuidando do serviço
de casa, o descampado francês, a iminência do perigo a se aproximar. Não é, porém,
o exercício-cinéfilo que o clichê sobre o cineasta nos faz esperar. A citação
a Leone – em particular ao prólogo grandiloqüente de Era Uma Vez no Oeste
– serve sobretudo para colocar o universo de Bastardos Inglórios sob o
signo de cinema, mas o desenvolvimento da seqüência aponta para um caminho inesperado
dentro da obra de Tarantino. É sobre o teatro da guerra que Bastardos Inglórios
versa. Um teatro filtrado pela representação e por todo o histórico de imagens
da grande “guerra justa”, mas ainda assim um teatro. Bastardos
Inglórios é uma “fantasia sobre Holocausto” de forma similar a de um filme
“nobre” como A Lista de Schindler. Só que Tarantino, assim como Paul Verhoeven
(cujo A Espiã segue o grande filme da II Guerra da década), compreende
que não há sentido em fazer um filme edificante sobre o assunto. Não se trata
tanto de Bastardos ser um filme de vingança violento quanto de ser um filme
vulgar e grosseiro. O gosto pelo exploit que tanto fascina o Tarantino-cinéfilo
jamais fora colocado para tão bom uso: do filme B mais vagabundo, o Tarantino-cineasta
parece tirar o que seria sua imagem justa. A imagem final com Brad Pitt cravando
sua suástica no “nazista sofisticado” não é só uma grande gag, mas um desfecho
perfeito para 150 minutos dedicados a dessaturar todo um imaginário da II Guerra
de um sem número de Soldados Ryans e Schindlers. A II Guerra de Tarantino é estúpida,
vulgar, grosseira e nada nobre ou justa: mesmo a chance dos aliados encerrarem-na
antes do tempo não se dá porque o destemido espião inglês colocou em prática a
propalada Operação Kino, mas porque um oficial nazista pragmático fez as contas
e decidiu vender o auto-comando alemão para salvar a própria pele. O
grande historiador britânico Eric Hobsbawn observou que as duas grandes guerras
do começo do século XX seriam o momento em que barbarismo adentrou a civilização
ocidental, começando com o massacre das metralhadoras na I Guerra e culminando
com as câmeras de gás ao final da II Guerra – numa observação eurocêntrica que
ignora um sem número de massacres em nome de colonialismo nos séculos anteriores.
Um dos grandes valores de Bastardos Inglórios é justamente que Tarantino
nos dá um olhar essencialmente americano sobre o teatro da II Guerra e este mergulho
na barbárie. Não é por nada que o tenente Aldo Raine (Brad Pitt) lança mão de
“táticas apache” para atingir seus inimigos nazistas. Se tanto Kill Bill
quanto À Prova de Morte também eram filmes de vingança (Tarantino aparentemente
se tornou um autor monotemático), não há em Bastardos Inglórios espaço
para personagens com o refinamento de uma Noiva e um Bill, ou para o trágico:
aqui só há a selvageria. Desde
a seqüência inicial com o Coronel Landa (Christoph Waltz) aos poucos subjugando
com palavras o fazendeiro francês fica claro que não haverá espaço para nada aqui
além de exercícios sádicos de poder. Landa e Raine não só são as duas armas secretas
de Tarantino – os dois personagens engenhosamente construídos e interpretados
para garantir o apelo popular do filme em meio a sua aspereza estética e dramática
– como duplos opostos e complementares. Por todas as suas óbvias diferenças (e
Tarantino não é nada sutil ao contrastar o poliglota Landa e o grosseirão Raine)
ambos permanecem unidos e complementares neste universo selvagem. O olhar de estrangeiro
de Tarantino é de grande pragmatismo: o mais próximo que a resistência francesa
passa do filme são os esforços de vingança particulares de uma judia se passando
por gentil, e os colaboradores franceses são reduzidos a uma gag absolutamente
grosseira estrelada pela tradutora de Goebbels. O único sentimento nobre que parece
restar na Paris ocupada de Tarantino é mesmo a paixão pelo cinema dos franceses. De
fato, todo o projeto de Bastardos Inglórios, assim como a precisão com
que Tarantino o conduz, fica claro na seqüência da taverna. Trata-se de uma cena
de 24 minutos com uma única locação, centrada na personagem (o espião inglês)
que numa narrativa mais convencional seria o protagonista da trama. Raine e Landa
são relegados a quase pontas, há muita violência, mas quase toda a ação se reduz
a uma guerra de palavras, com a tensão gerada por personagens tentando sustentar
múltiplos papéis, num trabalho primoroso de montagem. Tarantino parece disposto
a esticar a cena até o limite, apesar de curiosamente não existir nenhuma digressão
aqui: cada passagem da cena conta e todos os elementos de que ela lança mão são
retomados de alguma outra forma até a sua conclusão (pré-ordenada como as de todas
as outras seqüências longas do filme). Se todas as seqüências de Bastardos
não deixam de ser duelos de poder – geralmente a dois – isto se multiplica ali
pelo excesso de atores, todos com agendas diversas. O local se torna uma armadilha,
e como no bom teatro, o espaço em Bastardos Inglórios tem uma dimensão
mítica (e se Enzo Castellari lhe emprestou o nome, não deixa de tratar-se de um
filme no espírito de Fritz Lang). Aos nossos “heróis” cabe
tentar uma manobra de evasão enquanto o oficial nazista pouco a pouco vai confirmando
suas suspeitas. Ao final, os jogadores se cancelam e sobra só uma pilha de corpos
(não há espaço no filme de Tarantino para o herói inglês ou para o eficiente oficial
nazista, só para selvagens descontrolados – ou sofisticados como Raine e Landa).
O pacto cordial que as partes estabelecem no começo se rompe e a barbárie se impõe.
Esta idéia é uma constante ao longo do filme: todos – exceto os Bastardos – dissimulam
o tempo todo, mas todas as aparências se dissipam em violência. A duração da seqüência
não é um capricho de Tarantino, mas uma necessidade: esticar até seu ponto limite
esta farsa civilizatória, protagonizada pelas duas figuras mais típicas do filme
- e não à toa com uma atriz como mediadora. Resta ao fim somente um espaço decorado
com cadáveres. Não há escapatória para a vulgaridade bárbara na Guerra de Tarantino. Outubro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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