O Segredo de Beethoven (Copying Beethoven),
de Agnieszka Holland (EUA/Alemanha, 2006)
por Cléber Eduardo
Copiando Beethoven
Não será por culto à filmografia da diretora
polonesa Agnieszka Holand que alguém sairá correndo para ver este
O Segredo de Beethoven – se alguém correr, certamente será
por Beethoven. Não por sua música, mas por sua vida. Ou, mais
especificamente, por um suposto segredo, que, ao virar título
em português, escancara o convite: “venha conhecer a intimidade
de um gênio”. Precisamos querer acreditar em cada detalhe do comportamento
do compositor, no melhor e no pior de sua personalidade selvagem,
de forma a nos colocarmos na condição de bisbilhoteiros de sua
privacidade. Esse é o pacto ofertado pela diretora.
Não importa, nesse pacto em específico, a “fidelidade”.
Acreditar na representação não significa acreditar que a representação
é uma cópia/reprodução de acontecimentos – nem parece ser este
o propósito de Holland. Se existe lá um pardieiro onde o artista
dorme e cria, se vemos lá um cabelo rebelde “de época”, se nos
sentimos em um “ambiente século 19”, já está de bom tamanho para
se criar a atmosfera. Importa então – se não apenas, ao menos
sobretudo – um espírito verossímil. Precisamos acreditar que Ed
Harris é Beethoven, que Beethoven é como Ed Harris no papel de
Beethoven, que tudo aquilo pode não ter acontecido na vida do
compositor, mas está acontecendo à nossa frente.
Não se está afirmando que, ao se acreditar nessa
representação, não se esteja percebendo-a. Inclusive porque, em
alguns momentos, ela parece pensada para ser percebida. Esse “olhe
para mim” está nos diálogos com missão didática, introduzidos
em algumas cenas somente para transmitir uma informação sobre
o compositor, e também nos surtos de performances de Ed Harris
– que, mesmo incumbidos de transmitir os transtornos de Beethoven,
nos fazem lembrar muito mais da existência de um ator fazendo
seu número. A questão é se, mesmo com a consciência desses artifícios,
cremos neles. No mundo audiovisual estabelecido por eles.
E esse é o grande desafio de Agnieska Holland.
Se o começo da narrativa é uma busca audiovisual para expressar
a sensorialidade do personagem Beethoven, com ressonâncias explícitas
de manifestações da vanguarda francesa dos anos 20-30, o desenvolvimento
do filme é pautado por duas estratégias estéticas razoavelmente
distintas. Uma adere a Anna Holtz, a assistente-prodígio (Diane
Kruger), e assume seu olhar. É o filme que olha para Beethoven,
mas, principalmente, para sua superfície excêntrica. Um filme
sustentado pela idéia de cena, com dois atores conversando, em
geral com um conflito a resolver. Todo
o trabalho está, na maior parte desses momentos, em escolher um
ponto de vista. Onde colocar a câmera para filmar a conversa e
para onde cortar quando se vai abandonar um plano? Busca-se uma
certa noção de transparência.
A outra estratégia estética, a qual somos apresentados
no começo, é mais complexa e arriscada. Agnieszka tenta, eventualmente,
“copiar” Beethoven (no sentido, de emular, de copy): quer
sua percepção, o estado de sua alma, impresso na imagem. E assim
altera o registro de câmera, ou muda a lente, para gerar soluços
visuais e pequenos colapsos. Podem soar estranhas essas investidas.
Eventualmente, óbvias; a maior parte do tempo, conservadoras e
falsas no atrevimento. Mas demonstram um desejo de procurar resolver
problemas da imagem, na imagem. Digamos que, em um filme sem
muitas rupturas com o cinebiografismo, esse é seu trunfo: buscar
uma expressão cinematográfica e não apenas a ilustração de um
momento de vida.
Talvez tenhamos de crer menos nos acontecimentos
mostrados e mais nas emoções e sensações em jogo. No tal segredo,
afinal, e nas implicações dele. Que segredo? Não se trata de nenhuma
revelação sexual, nenhum amor proibido, nenhum esqueleto no armário.
Não se trata nem da importância, para sua obra de fim de vida,
da proximidade com Anna Holtz, misto de “copista”, secretária,
babá e musa de sangue jovem – que, no título original (Copying
Beethoven), tem status de instância narradora e protagonista.
Não estamos aqui em Minha Amada Imortal, no qual o Ludwig,
na pele de Gary Oldman, tinha um enigma romântico. O segredo mencionado
no título em português, tendo sido ou não essa a intenção da distribuidora,
se refere à percepção única do compositor. À sua subjetividade
auditiva/mental.
O segredo aqui é a própria sensibilidade de Beethoven,
que, ao fim da vida, quando apresenta seus últimos trabalhos,
dissonantes e pouco sedutores, não arrebata quase ninguém. O segredo
é a confirmação vitoriosa de sua superioridade, de seu espírito
avançado, de sua sensibilidade de vanguarda, cuja abertura para
a expressão musical do desequilíbrio e do tumulto, quando apresentada,
provoca debandada da alta sociedade de Viena. Parece bastante
evidente que, no fundo, tudo não passa de um clichê: o do gênio
incompreendido e doente, cujo fracasso é menos culpa dele e mais
de sua época atrasada, que, ao contato com a juventude de uma
pupila, incendeia-se todo para produzir labaredas de despedida.
Sim, outro clichê, claro: o do último entardecer da vida, o do
crepúsculo de um homem extraordinário, quando perto de carne/mente
frescas.
Pois compreender o gênio é a missão de Anna Holtz:
Beethoven está quase surdo quando o filme começa e, embora seja
um vulcão tirânico, sádico, quase um autista em suas criações
obsessivas, não deixa de ouvir a linda assistente. Ela o ajuda
a reger a Nona Sinfonia, cuida de sua espelunca e esfrega sua
barriga (sim, esfrega, está lá), mas, nem com toda essa disposição
e com um par de olhos “azuis-intensos”, ela está a salvo dos ataques
coléricos do chefe. Só por meio da convivência, da quase dependência
mútua, é que a assistente decodificará o enigma de Beethoven.
Como? Quase ao final, Anna Holtz diz ao mestre, após uma fracassada
apresentação, que, talvez por alguma limitação sensorial, ela
não “sinta” aquela música (A Grande Fuga). Ele está arrasado:
a sala vazia, nem ela compreende. Sua percepção (a de Beethoven)
seria autista. Incomunicável. Indecifrável. Um segredo.
No entanto, no começo do filme, enquanto Anna
segue rumo ao leito de morte de Beethoven, ela ouve, dentro de
uma carruagem, um violino na estrada. Um menino o toca. As imagens
entram em estado de vertigem, de quase abstração, com alterações
de foco, de textura, de velocidade e de atitude de câmera. Ao
encontrar Beethoven momentos depois, Anna diz extasiada: “Ouvi
a música como o senhor ouve”. É esse acesso à sensibilidade do
compositor o segredo descoberto por Anna, percebendo os sons,
a música, o mundo e Deus como percebe Beethoven. Copiar Beethoven
é ver como ele vê, sentir como ele sente, ouvir como ele ouve.
É dar um copy.
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