2em1 Bezerra
de Menezes - Diário de um Espírito, de Glauber Filho e Joe Pimentel(Brasil,
2008); O Retorno, de Rodolfo Nanni (Brasil, 2008) por
Eduardo Valente O que pode a crítica?
A
relação entre o crítico de cinema e um filme muitas vezes é bem mais complicada
do que deixaria antever um simples delineamento do papel que cada um ocupa no
tabuleiro do cinema – isso, claro, quando entendemos a crítica da maneira como
gostamos de pensar nela aqui na Cinética: como uma experiência complementadora
mesmo às de realizar ou assistir um filme (e não como guia de consumo cultural
ou simples juiz de méritos artísticos). Porque fato é que há uma série de filmes
que parecem desafiar o crítico a complementá-lo como experiência, a retornar algum
gesto criativo sobre aquele da realização ou a levá-lo adiante de alguma forma.
Por motivos distintos, mas complementares, os dois filmes de que tratamos aqui,
nomeados aí em cima na página, são destes casos que tornam tão difícil este gesto,
aparentemente tão simples, que é o de escrever sobre uma obra cinematográfica.O
cinema industrial de manufatura No
caso de Bezerra de Menezes, isso se dá por um motivo bem forte: tudo no
filme parece afirmar que este é um trabalho que absolutamente prescinde da crítica
como gesto de retorno, de ampliação, de diálogo mesmo. Primeiro porque tudo que
diz respeito ao seu fazer cinematográfico, seja no campo das ambições artísticas,
seja no campo mais banal do artesanato da linguagem, é tão gritantemente primário
que parece não haver sentido em sequer ser avaliado ou contextualizado como gesto
criativo. De fato, Bezerra de Menezes parece desafiar a própria história
do cinema, pois uma enorme parte de como faz uso das ferramentas do cinema (como
seu uso de gruas ou movimentos de câmera, sua iluminação, seu trabalho de atores
ou de direção de figurantes, sua decupagem das cenas mais banais, seu uso da voz
off ou da trilha musical) parece simplesmente reprisar tudo aquilo que,
há mais de vinte, trinta anos, já tinha virado lugar comum passível de paródia
artística. Vendo Bezerra de Menezes, às vezes temos impressão de estar
assistindo a um Corra que a Polícia Vem Aí que parece levar a sério o que
devia ser piada. O motivo pelo qual isso acontece de maneira
tão flagrante no filme é exatamente o que dificulta o trabalho do crítico: claramente
para os responsáveis pelo filme, mas principalmente para seu público-alvo, isso
tudo não é uma questão. Na sala bem cheia do cinema onde ele foi visto, não parecia
incomodar ao público a estética semelhante a uma telenovela da Bandeirantes dos
anos 80. Isso porque, na verdade, a estética (ou, sendo menos ambicioso, a manufatura
pura e simples do filme) não é questão de atrativo para o público que acolhe o
trabalho pelo seu tema, por suas tintas religiosas principalmente, mas também
pela narrativa conformista de um “brasileiro de bem que se sacrificava pelos mais
necessitados”. A partir disso, basta um certo tom “formal” (nada melhor que Carlos
Vereza no papel principal para dar conta disso), e o resto pode ser colocado em
piloto automático. Se
visto por este sentido, Bezerra de Menezes quase chega a ter um valor neste
momento do cinema brasileiro: o de retomar uma idéia de cinema industrial e popular
à brasileira – realizado com óbvia pressa e recursos escassos, mas com um público-alvo
pré-escolhido e um formato pensado para ele e somente para ele. Só que onde a
porca torce o rabo é no fato de que este é um cinema industrial e popular numa
cinematografia sem indústria nem público constante. Sendo assim, ele não possui
os valores típicos do cinema industrial no sentido tradicional (como até já tivemos
aqui mesmo, mais recentemente na Boca do Lixo), seja o domínio sobre a manufatura
constante de uma obra que leva a eventuais trabalhos minimamente ousados ou diferenciados,
seja a capacidade de gerar lucros sobre si mesmo que levem a mais e diferentes
trabalhos. Sendo assim, como exemplo manufaturado de cinema industrial, Bezerra
de Menezes se torna este enigma para o crítico: como resultado programado,
um sucesso; como sintoma, um caso de interesse; mas como obra autônoma, é de uma
opacidade que resiste à aproximação crítica. O cinema de
“utilidade social”É curioso que o outro filme de que tratamos
aqui se localiza no espectro exatamente oposto ao de Bezerra de Menezes,
ao menos no que se refere à sua lógica de produção: se Bezerra é todo voltado
para a idéia de um público-alvo, no sentido mercadológico mesmo do termo, é certo
e garantido que não existe qualquer público para um produto como O Retorno
– pelo menos não nas salas de cinema do Brasil de hoje. E nem é o caso de citarmos
os 164 espectadores registrados pelo filme em duas semanas de lançamento como
um dado frio que comprove isso, mas principalmente perceber o quanto este resultado
era previsível: afinal o espectador de cinema vem se mostrando cada vez mais avesso
aos filmes que se detenham sobre as “mazelas do Brasil”, uma definição da qual
o filme de Rodolfo Nanni não escaparia de forma alguma – muito pelo contrário,
uma vez que este tema é de fato o seu motivo de ser. Senão,
vejamos: O Retorno começa com um plano aberto da paisagem do sertão brasileiro
sobre o qual se projeta um texto do século 16 que parece jogar sobre aquele espaço
o peso de uma História que serve como indicador determinista: trata-se de um lugar
fadado a carregar o peso de sua condição histórico-geográfica, ao qual Rodolfo
Nanni é impelido a voltar (como nos afirma em primeira pessoa e em cena, logo
no começo), 50 anos depois de lá ter realizado O Drama das Secas. Parece
ser uma viagem de retomada de contato com uma realidade, mas de saída percebemos
que a agenda é a mesma que Vidas Secas (e tantos outros filmes/textos/estudos)
já consolidara: a permanência da miséria sertaneja no Nordeste brasileiro. Nanni
parte então numa viagem de (re)“descoberta” com itinerário já conhecido. Rodolfo
Nanni veste o chapéu do desbravador, do revelador de um Nordeste que “compreende”
totalmente (afinal, o filme no seu desfecho expõe problemas, causas, conseqüências,
possíveis soluções) só que nunca parece se dar conta de que chega algumas décadas
atrasado e que não revela nada que não tenhamos visto com enorme freqüência –
seja na TV ou no cinema, emprestando à sua postura em relação àquele espaço algo
de, na melhor das hipóteses, profundamente ingênua. Só que
isso não parece ser um problema considerado pelo filme. Assim como Bezerra
de Menezes parece ignorar cinqüenta anos (ou mais) de história da linguagem
da ficção cinematográfica, O Retorno fará o mesmo com a idéia de documentário
– principalmente o contemporâneo, mas não só. Não que não haja alguma sofisticação
de linguagem em jogo (indo desde a fotografia com estranhíssimas gruas pela paisagem
árida e de casebres até um trabalho de pesquisa musical sempre como fundo sonoro),
mas falamos aqui das questões levantadas sobre as aproximações com o objeto documentado
e, principalmente, as motivações do documentarista.
Na
medida em que O Retorno se desenvolve, e principalmente vai terminando,
percebemos que este é o seu gesto motivador único: denunciar, “revelar” e, no
limite, ajudar a melhorar uma situação no mundo. É verdade que o fato de que ele
não vá conseguir isso representa menos um problema para o crítico do que para
o realizador – afinal, se poder a linguagem cinematográfica tem, ele certamente
não se encontra no seu melhor no que se refere a “mudar o mundo” (pelo menos não
com uma obra; ou ao menos não uma obra com esse tema, neste país, dentro da receptividade/relevância
sócio-cultural com que será recebida). No entanto, tal motivação como preocupação
única representa sim o problema para o crítico: afinal, se o filme não quer cotejar
a discussão estético-narrativa do documentário contemporâneo, no Brasil ou no
mundo, e se coloca apenas como portador de uma mensagem, de que pode servir o
diálogo com o crítico? O filme se fecha então em copas,
de novo e como Bezerra de Menezes num caminho diferente: ambos menos auto-conscientes
do que simplesmente nunca pensados para serem discutido por critérios outros que
não os externos à sua forma (narrativa, estética): o de ser visto por um público
num caso, e o de “expor uma realidade” no outro. O que pode o crítico, então,
frente a estes objetos que prescindem totalmente dele? Cheio de dúvidas ele tenta,
no máximo, falar mais dessa resistência do material a suas ferramentas do que
dos filmes em si. E torcer para que isso sirva para algo ou alguém – será?
Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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