Billi Pig, de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond

Subúrbio hipster

Caminhando pela orla da Guanabara, as pedrinhas combinadas em preto e branco, o sol anil beijando-lhe a face, um extasiado Tião Macalé debatia com alguém da fina malandragem. Talvez o último resultado do jogo do bicho, talvez a gravação do próximo comercial na TV, talvez o tudo e o nada. Francamente, não me recordo o assunto, mas ao vê-lo tive apenas a urgência de gritar o refrão de uma Era – “nojento!” – , ao que ele, cordato em sua efervescência bucal, sorriu e vibrou. Tião representava um mito entre as crianças, um super-herói de boteco. Hilário, trôpego, pilantra. Lembro-me disto porque se a comédia brasileira no cinema parece sempre se iniciar e terminar na chanchada – e na versão à qual deram o prefixo de “porno”chanchada –, criaturas do patamar de Macalé também são uma ponte para o que há de insondável nas nossas gentes. Essa cara de pau, esses chistes, esses refrões que muitas vezes nascem do mais terno povo. Operários, manicures ou pais de família envernizados, bebericando água tônica.

Billi Pig tentou se encaixar meio vacilante nesse universo, às vezes abandonando-o, às vezes puxando-o para perto. Uma bonitona de avenida, dona de um porco de brinquedo, quer virar atriz, ganhar dinheiro e fama. Pois bem: logo descobrimos, chocados, que Marivalda (Grazzi Massafera) reside no subúrbio do Rio de Janeiro, o território sacrossanto em que o América reina como segundo time no futebol e em que a maioria das escolas de samba dormem, antes de reaparecerem todo Fevereiro. Digo que a descoberta “choca” pois Marivalda faz firulas com aquela prosódia interiorana que tornou a atriz, Grazzi Massafera, queridíssima das edições do Big Brother Brasil. Mais chocante ainda é que seu pamonha marido suburbano (Selton Melo) entra na linha de crise existencial, pressionado pela falta de apetite na cama. Fica depressivo, doidão, introspectivo. Coisa rara, que a Atlântida ou as comédias B da Herbert Richers nunca permitiriam e que, mesmo nas pornochanchadas do Beco da Fome, era um tabu manipulado ao alho e óleo.

Sinal dos tempos, um refrão bucólico em inglês aparece no momento de comunhão do marido e da mulher, como se o diretor José Eduardo Belmonte não se controlasse e desse uma rapidinha de milímetros em Meu Mundo Em Perigo e Se Nada Mais Der Certo, os belos filmes anteriores a este Billi Pig. Lembra, porém, que não está em São Paulo, nem Brasília, e volta a uma doçura de casinhas meigas, portões de grades, estilo que Waldir Onofre pintaria e bordaria com grande conhecimento de causa no insano As Aventuras Amorosas de Um Padeiro (1975). Trafegando por ali, vejam vocês, Belmonte arranja uma terrível cáfila de bandidos atrapalhados. Descem miudinho até o chão, rebolam e atualizam os malfeitores que antes ficavam apenas no convescote do samba. Em Billi Pig, grita o pseudo funk, o pseudo brega, coreografias absurdas, paizão apaixonado pela filha. Como existe ainda um falso padre, uma dona de funerária e o esposo com disfunção erétil, faltou o macumbeiro para desfazer a encruzilhada. Jogar uns búzios e dizer a sorte, naquela certeza do cartomante de folhetim, decifrador de todos os mistérios.

Vilões mesclam-se aos mocinhos: o padre é meio tarado; o chefe do tráfico distribui dinheiro – esforço autêntico de Milton Gonçalves e Otávio Muller. Vão parar em um hotel cinco estrelas, mas sentem saudades de Marechal Hermes. A nostalgia é uma droga, eu sei, mas é a mesma Marechal Hermes de Chuvas de Verão (1977), do palhaço Guaraná, do x-9 Pereba e de toda uma fauna que se impunha através da naturalidade. Escapa aos dedos de Billi Pig que o Rio de Janeiro profundo não é São Paulo, não transa bem com a idéia contemporânea de sujeitos que fogem da esposa boazuda, nem com bandidos com look da Rua dos Timbiras. A “festa do milho”, onde acontece a tragédia redentora, também parece deslocada de algum ponto no interior do Paraná, talvez para fazer par com a Marivalda caipira, preterida por Wanderley, o marido desligadão. Que tal se Wanderley aparecesse ouvindo Radiohead na porta de casa, e se a “boca do zoológico” fosse frequentada por chorosos emos dançadores de catira?

Alguém pode finalmente perguntar do porco e é ele a chave de outras tantas dificuldades. “A metáfora se coloca no exato ponto onde o sentido se produz no não-senso”. O porco, assim como Preta Gil e Milhem Cortaz, não existe. Fica ali, vagando, e quando a história corre sem ele, melhor para a história (e pior para a citação). Quando desfila aos nossos olhos, acaba virando uma espécie de superego da protagonista. Mas poucos conseguem rir do pequeno suíno, gostar dele, o que nos faz voltar ao problema. No porco, deveria colocar-se a graça. Só que não há tanta graça. Não há pois Billi Pig, apesar da boa vontade, apesar do flerte, parece tratar de assuntos que desconhece. Ou que não se interessou em descrever com verossimilhança. Assim como o porco que ora fala, ora pisca e ora emudece, os personagens não se decidem quem são. Simplesmente porque parecem ser algo que não deveria estar ali, no onírico arrabalde carioca. Chamem Tião Macalé de volta:o subúrbio virou hipster.

Março de 2012

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