Bilú e João, de Kátia Lund
(Brasil/Itália, 2005)
por Cezar Migliorin

A violência do banal

O curta-metragem Bilú e João, de Kátia Lund é parte do filme Crianças Invisíveis (All The Invisible Children), que tem ainda filmes de diretores como Emir Kusturica, Spike Lee, Ridley Scott e John Woo, entre outros – todos tendo como foco a situação de crianças em diversas lugares do mundo. O curta acompanha duas crianças pobres (Francisco Anawake e Vera Fernandes) em São Paulo, na sua busca por alguns reais para comprar tijolos. Pedir ou roubar não é dado como possibilidade, e isso introduz as crianças em uma complexa circulação pela cidade e também em uma cadeia de produção e trocas econômicas. O filme se passa em um dia e uma noite sem levar a nenhum lugar especial e sem nenhum grande evento.

No filme, as crianças estão inseridas no mundo do trabalho; recolhem alumínio e papelão e fazem pequenos transportes. Na circulação e nas trocas tudo tem valor: o espaço de trabalho, o carrinho que as crianças alugam para fazer transportes e todos os restos do consumo. Quando o garoto ganha uma laranja de um feirante, em um dos poucos gestos descompromissados do filme, ele retribui com a objetividade da lógica que domina seu dia, sua vida. Ele leva ao feirante um comprador: - Estas são as melhores e mais baratas laranjas da feira, diz o garoto ao comprador.

A violência do curta de Kátia Lund está no ordinário, no que é aceito, no que é parte do movimento da cidade e do mundo. Elas não estão envolvidas em drogas, brigas, roubos ou guerras, não estão na ilegalidade. Pelo contrário, fazem parte de uma cadeia produtiva muita mais ampla que São Paulo e sua periferia. No momento em que vão vender as latinhas que recolheram acabam recebendo um real a menos por quilo porque o dólar caiu. Vamos percebendo no filme uma naturalização deste lugar da criança, ou da falta de um "lugar"; em meio à agressividade que não é do pai ou de um personagem específico, mas da cidade, dos grandes carros, da arquitetura, da lógica que as crianças são obrigadas a compartilhar. "Amanhã a gente continua" diz a menina no final do filme. O realismo brasileiro trocou a bicicleta pelo carrinho de mão e, sobretudo, perdeu o pai. A delicadeza do filme de Kátia Lund está na maneira que colocou estas crianças no interior desta lógica.

No final, um plano emblemático: em primeiro plano a favela, e no fundo os prédios espelhados. O contraste explicitado. Este plano parece ter sido arrancado do roteiro, podemos quase ouvir a diretora que diz: "é disso que eu preciso falar!" Levei esse plano para casa... Aquela imagem me parecia simplória, um clichê da desigualdade no Brasil, uma imagem amplamente conhecida. Um plano que refazia a lógica da separação desfeita pelo filme. Porque utilizá-la? Trago duas hipóteses, não excludentes.

A primeira reflete uma crença de Kátia Lund no cinema. A crença que, após construir as relações entre personagens, sistemas de produção e a cidade, esta imagem perderia sua nulidade, seu auto-apagamento no clichê e ganharia nova vida. Como se após o filme – já que se trata da última imagem do curta – fôssemos capazes de ser tocados novamente por uma imagem emblemática, que tende a ser apagada se não construirmos um espectador para ela. A segunda hipótese é conciliatória, e por isso o risco do clichê. Uma imagem-clichê tem um sentido: é assim, assim é o mundo. Se esta imagem não foi desconstruída, corre o risco de denunciar sem sair do lugar. A imagem conhecida nos garante um lugar, sabemos como reagir a ela, não nos desloca de um saber que já possuímos; esse é o risco. Talvez por tudo isso este plano final do curta tenha me ocupado, pelo risco de amortecer a narrativa e a complexidade que o filme construiu.


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