Bollywood Dream – O Sonho
Bollywoodiano,
de Beatriz Seigner (Brasil/Índia, 2009) por
Eduardo Valente Turismo
existencial
Logo no começo de Bollywood Dream, antes
mesmo que as conheçamos como imagem (só vemos os passaportes
em suas mãos), as atrizes principais do filme (que interpretam
também três atrizes) conversam com o oficial da alfândega indiana,
que pergunta o que elas foram fazer ali. “Queremos trabalhar como
atrizes em Bollywood”, diz uma em português; ao que a outra traduz
para o inglês como “viemos fazer uma viagem espiritual”. Embora
exista uma razão prática para o “erro de tradução” (certamente
o guarda ouve muito mais a segunda razão para ir a Índia, e ela
certamente seria menos problemática para a entrada no país), é
do dilema entre estas duas respostas que mais sofre Bollywood
Dream – que causa inegável interesse por sua opção de co-produção
entre Brasil e Índia, que não se encaixa no sentido mais oficioso
da expressão, o que pressupõe um trabalho a nível de Estados,
algo que não existe no modelo ultra-independente deste
filme.
De fato, não é difícil ver na tela que o filme
nasce de um fascínio bastante sincero por parte das suas realizadoras
(diretora e atrizes) por uma cultura distante, onde o cinema é
tão onipresente. No entanto, fica uma distância entre o fascínio
do olhar delas e o das personagens que encarnam, que precisariam
servir como guias para um possível fascínio da parte de quem assiste
- afinal, este sim o mais importante uma vez terminado o projeto.
Acontece que, como não é incomum em filmes de “estrutura livre
em torno de uma viagem”, Bollywood Dream tem muita dificuldade
em estruturar sua narrativa, algo que nasce desde a incapacidade
de diferenciar de fato suas três personagens principais (é sempre
um sinal ruim quando o mais cativante personagem de um filme é
um coadjuvante-escada, como é o caso aqui com o menino que vira
professor de dança indiana) até a acreditarmos realmente na jornada
delas por aquele espaço estranho, tanto na versão prática-profissional
quanto principalmente na espiritual-experiencial.
Sim, porque Bollywood Dream acaba tentando
por demais rezar para estes dois deuses: ele não opta nem por
um cinema que realmente se entregue ao sensorial (as imagens exóticas
das ruas, paisagens e figuras humanas indianas nunca conseguem
passar do que esperamos antes mesmo de começar a ver o filme,
algo que já está mais do que visto em inúmeros documentários,
reportagens e até mesmo ficções que se apaixonam pela Índia),
nem
por realmente buscar um encadeamento baseado nos preceitos mais
tradicionais de construção de personagem e de história (é preciso
mais do que flashbacks de poucos segundos com a imagem
de um filho deixado no Brasil ou de um trabalho como dançarina
de pagode para dar consistência a uma personagem – aliás, observação
à parte: estaria Paula Braun ao fazer este personagem mandando
recado para o cinema nacional de que não quer mais ser conhecida
como “A Bunda” de O Cheiro do Ralo?). O dilema mal resolvido
entre estes dois caminhos se explicita particularmente no longo
número musical no meio do filme em que se usa tanto de imagens
bastante clichês e turísticas das personagens “penetrando na vida
indiana”, quanto faz-se a história avançar na medida em que elas
ensaiam uma coreografia. E mais ainda quando o filme dá um final
separado para cada personagem, que por parecer tão arbitrário
(sentimos que poderia ser o inverso para cada uma delas e não
faria diferença), revela o quanto o desenrolar dramático não nos
cativa.
De fato, o que falta a Bollywood Dream
é a sensação de insegurança e de perigo que está envolvida numa
tal viagem em que se deixa tudo para trás em busca do desconhecido.
Com suas atrizes quase sempre bem vestidas nos modelitos oriental-ocidental,
as cenas aqui e ali de conflitos entre elas, ou delas com os parentes
brasileiros pelo telefone, soam sempre externalizadas, nada mais
do que necessidades de roteiro. Não acreditamos no seu sofrimento
ou angústia, porque de fato não o vemos como experiência na tela.
Tudo soa epitelial, como uma longa jornada turística por um país
estranho e contraditório, como bem sabemos ser a Índia. Mesmo
na sua opção pelo cinema de guerrilha (da câmera digital, da não-iluminação,
das imagens documentais), em tudo oposto à sanitização "global"
da imagem de algo como a novela Caminho das Índias, o resultado
final atingido por Bollywood Dream nos coloca em posição
não muito distinta em relação ao que vimos na TV: a sensação de
bem educado passeio, nunca um mergulho. Uma viagem espiritual,
talvez, mas apenas no sentido que aquele guarda de fronteira já
ouviu tantas vezes de turistas que ali entravam para suas semanas
na Índia.
Outubro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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