Borat
- O segundo melhor repórter do glorioso país Casaquistão
viaja à América (Borat - Cultural learnings of America for make
benefit glorious nation of Kazakhstan), de Larry Charles (EUA, 2006) por
Cléber Eduardo
O humor anti-identitário de Borat Uma
das principais maneiras de se referir ao humor de Borat é vinculá-lo às
características do trabalho do comediante inglês Sacha Baron Cohen. O filme
estaria em consonância com sua anarquia de bôbo da corte. Também sua formação
intelectual e sua origem judaica têm sido levadas em conta por alguns críticos
e jornalistas culturais para legitimar o humor de Borat. A escatalogia
e o politicamente incorreto, celebrado em várias situações como sinal de transgressão
da pauta multiculturalista, seriam mais justificáveis por conta da biografia de
Sacha. Mas, estas são informações complementares, extradiegéticas,
que não vão ao filme. Assim como não nos ajuda em nada para lidar com esse material
saber quais situações mostradas na tela são frutos manipulados de intervenções
do ator com anônimos e quais são encenadas para se cumprir o roteiro. Ter conhecimento
sobre os processos movidos contra Borat, motivados pelo uso fora de contexto de
cenas com pessoas reais (não com atores fazendo personagens), apenas nos coloca
uma questão ética, sem ainda nos levar ao filme como está no quadro. E talvez
não seja simples, de fato, decodificar o código Borat. Pois
é uma ingenuidade acreditar em uma suposta transparência de estratégias na operação
cômica do filme. Há pelo menos dois estatutos de humor convivendo na narrativa:
um empregado em forma de painel/esquete de sociedade, por meio de um road-movie
vivido e relatado por um estrangeiro (Borat, repórter do Casaquistão, em viagem
pela América), outro explorado como avacalhação geral e subversão dos limites,
tratando o humor como registro de inversão de valores. Há em ambos estatutos traços
recorrentes da comédia americana no cinema e na televisão: nonsense, gags,
escatalogia, constrangimentos, a zona geral. Sacha entrega-se convictamente à
tarefa de agir como um imbecil e, assim, extrair toda a imbecilidade de seu entorno
para revelar sinais atenuados pelos códigos de comportamento – ou sinais dos próprios
códigos. O
“humor sociológico” tem como “alvo” a sociedade americana em sua faceta politicamente
correta/liberal e em suas manifestações associadas à direita. O humor do absurdo
e da subversão das regras tem como estratégia de afirmação, e não alvo, a construção
de uma imagem de atraso e de exotismos culturais para o Casaquistão. Repetindo:
Os EUA são alvo; o Casaquistão, uma estratégia, um meio. Essas duas operações
não são construídas dentro do filme, mas em uma relação com o espectador, que,
ao ver as imagens “sobre os EUA”, deve entender aquilo como paródia sociológica,
e, ao ver as imagens de traços culturais bizarros do Casaquistão, deve assimilar
aquilo como “brincadeira de mau gosto”. O humor sobre os
americanos é tratado como piada a sério, como ferramenta crítica em seu tom de
avacalhação, como forma de se ridicularizar segmentos sociais e políticos, sempre
mantendo relação com um país real fora das telas. O humor com o Casaquistão é
para ser apenas piada, uma maneira de transgredir limites com inconseqüência,
uma forma de ser sacana na escolha do país, produzindo para ele a imagem de um
atraso caracterizado por misoginia, taras, anti-semitismo, homofobia e práticas
bárbaras (segundo os valores ocidentais), sem com isso estar sendo “contra” o
país real, mas apenas o usando para desrespeitar a normatização multiculturalista.
O primeiro tipo de humor, que tem como alvo os EUA, é uma
paródia de um país real, ali documentado por seus estereótipos, cujas aparições
na narrativa trazem à tela uma “unidade imaginária”, cheia de rachaduras. Os americanos
com os quais o repórter Borat cruza ao longo da viagem pela América têm fobia
a contatos físicos, são organizados em associações culturais, étnicas e sexuais,
vivem sob uma série de regras de “tolerância com a diferença” e, apesar ou por
conta disso, manifestam pouca tolerância com essas diferenças. Essa atitude reacionária,
“real” no caso dos americanos, é similar ao atraso do Casaquistão – não o Casaquistão
real, mas o da piada inconseqüente. Pela lógica do filme, a direita americana
é igual ao primitivismo cultural da Ásia Central. A
utilização do Casaquistão, para além da piada rebelde (como é da natureza do humor),
é também política (outra natureza do humor, vinculada à sua rebeldia). Borat é
encarregado de ir à América para aprender os valores do Ocidente. Seu país ainda
não está formatado pela cultura ocidental dos “direitos humanos e universais”
e pelos valores democráticos dos EUA. Em vez de ser americanizado por uma colonização
cultural, o Casaquistão, por decisão do governo, reivindica ativamente sua americanização
e inserção, o que o torna uma metáfora de momento. O colonizado escolhe o colonizador
e vai adotá-lo como modelo. Há uma outra natureza política
no uso estratégico do Casaquistão. Se o país serve como “objeto” para o filme
desrespeitar o bom senso político e as convenções morais do ocidente, sua escolha
também é um sintoma do cinema americano, tradicionalmente um produtor de imagens
e repertórios de conduta de outros povos e países para todo o mundo, de modo a
transformá-los em produtos midiáticos, sem responsabilidade para com as implicações
políticas dessa operação. Borat é o diagnóstico e também o sintoma; ou talvez
a consciência autoparódica dessa sua ambígua condição. Borat
reivindica para o humor, nesse sentido, a liberdade de ser irresponsável. A comédia
seria uma espécie de “estado de exceção” ao contrário, uma suspensão de toda e
qualquer regra, um mundo de inversões de valores, cuja única regra é botar abaixo
as normatizações. No entanto, a suspensão da lei proposta pelo humor pode, ao
final, confirmá-la (as leis), pois o humor não é político em si mesmo, mas uma
ferramenta política, sobretudo quando usado contra as esferas dos poderes legitimados,
contra seus signos e mitos, expondo-os ao ridículo e desconstruindo suas imagens. Por
essa razão, quando Borat desconstrói um programa de TV, depois um jantar no Sul
dos EUA, o humor vai às alturas. No segundo caso, depois da elite sulista ter
boa vontade na tarefa de americanizar o primitivo da Ásia Central, a polícia é
chamada a intervir, de modo a punir a inserção de uma prostituta negra e gorda,
convidada por Borat, no círculo branco. Essa prostituta, depois da decepção de
Borat com sua paixão-ícone, Pamela Anderson (mulher-sexo), será a eleita. Negra
e gorda. É o que Borat, em sua viagem pela América, descobre de melhor. Um ser
humano acima de sua categoria, capaz de ser outra pessoa em outro lugar. Não se
estará indo contra qualquer categoria identitária e transformando identidades
nacionais e culturais em piada esculhambada? Nem é preciso saber da origem judaica
de Sacha, aqui em personagem anti-semita ortodoxo, para se perceber essa possibilidade
de sentido. Borat é um contra-ataque nas políticas identitárias e segregacionistas.
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