Borat - O segundo melhor repórter do glorioso país Casaquistão viaja à América (Borat - Cultural learnings of America for make benefit glorious nation of Kazakhstan),
de Larry Charles (EUA, 2006)
por Eduardo Valente

Sutileza que se sobrepõe à grosseria

Curioso: saí de casa animado com a chance de ver um filme “ofensivo”, “mal educado”, “de mau gosto”. No entanto, para ver o filme, me dirigi ao Estação Botafogo 1, cinema que é o marco do “cinema alternativo”, do “circuito de arte” carioca dos anos 80 para cá, marca associada sempre ao “bom gosto” e ao “bom cinema” – e onde, até o momento, nunca se ouviu falar da exibição de um filme dos irmãos Farrelly, por exemplo. Completando a estranha experiência, eu chego lá às 16h30 de uma quarta-feira, e como se fosse qualquer outro filme ao gosto deste mesmo público, encontro uma audiência formada, principalmente, por senhoras idosas em grupos enormes de amigas. Esta experiência pré-filme já deveria me fazer esperar o que viria: sim, claro, Borat (o personagem) é desbocado, é agressivo ao senso comum e, acima de tudo, é bastante afiado no seu humor. No entanto, Borat (o filme) é um trabalho de surpreendente conformidade narrativa ao cânone do cinema de ficção.

Por conformidade, é bom que se esclareça, não se compreende aqui uma crítica ao filme: pelo contrário, a minha melhor surpresa foi ver na tela um trabalho de roteiro, criação de personagens e filmagem que nem de longe tem qualquer traço de descaso ou desorganização, como se poderia supor a partir da estrutura em esquetes que marcava o personagem nas suas participações na TV. De fato, se algo se destaca em Borat é a sua superioridade como projeto cinematográfico em relação à imensa maioria dos filmes adaptados de personagens ou programas de televisão realizados em esquetes (aonde pensamos especialmente nos dois filmes lamentáveis do Casseta e Planeta e a maioria das adaptações de personagens do Saturday Night Live para o cinema).

A trajetória cumprida pelo repórter e seu produtor através da América (já a partir da introdução e no epílogo no Casaquistão) é excepcionalmente coesa, com um ritmo preciso (não apenas no timing cômico das esquetes, um dos fortes do ator Sacha Baron Cohen) e uma filmagem extremamente hábil na sua enganosa improvisação – que mistura momentos de grande elaboração na passagem de um registro “amador” para uma linguagem mais clássica da ficção. O uso na narrativa da idéia da “reportagem” é muitíssimo bem resolvida a partir de um artifício surpreendentemente simples e quase imperceptível: a invisibilidade da figura do “câmera” dessas reportagens, local onde o filme se aproveita para constantemente confundir registros sem nunca tornar isso uma questão para o espectador (neste aspecto, o filme é muito mais bem resolvido como objeto complexo do que qualquer narrativa auto-centrada e chamativa que um Charlie Kaufman costuma urdir).

Muito por conta desta estrutura tão pensada, e ao mesmo tempo “comportada”, confesso que a discussão que esperava que me chamasse mais atenção no filme (algo sobre os limites do humor) passou longe da minha cabeça ao longo da minha fruição desta comédia tão precisa (e engraçada, claro). Da minha cabeça, aliás, e das velhinhas do Estação também – que, no final do filme, ouvi se perguntando: “Gostou do Borat?”; “Adorei!”. A meu ver isso acontece porque, mesmo com o absurdo humor físico de momentos como a briga com o produtor no quarto, ou nos momentos de confronto sócio-ideológico (o hino no rodeio, o antológico jantar em sociedade), ou ainda nas piadas de cunho étnico (principalmente com a relação de Borat com os judeus), os testes que Borat, o filme, faz o espectador enfrentar na sua tolerância, são absolutamente compensados pela empatia de Borat, o personagem, com este mesmo espectador.

Se não vejo o espectador sendo desafiado nos seus limites, me parece igualmente tolo cair numa discussão qualquer sobre a questão ética de possíveis limites cruzados pelo filme em sua filmagem. Afinal, a meu ver a estrutura de aproximação usada por Sacha Baron Cohen e equipe está muito próxima daquela usada por Frederick Wiseman em seus documentários, no sentido da visibilidade do ato da filmagem. Seja frente ao olho atento de Wiseman ou da figura cativante de Borat (e é igualmente curioso ver como um e outro também se interessam pela mesma lógica das “instituições americanas"), a única coisa que se pede dos personagens filmados é que sejam eles mesmos (ou interpretem-se a si mesmos), e qualquer ridículo que daí seja intuído está sendo colocado em cena pelas próprias pessoas retratadas – ou pelo olhar do espectador. Isso me parece especialmente claro na cena da igreja evangélica, onde a postura de Borat é quase respeitosa frente ao culto, e qualquer inflexão de tom será dada pela visão que o espectador tiver do espetáculo que pastores e fiéis encenam. Estamos longe da lógica da pegadinha ou da câmera escondida, e parece ficar claro então que o que temos aqui é muito mais uma questão de moral do que da ética – e se passamos ao campo de uma moral da intervenção, Borat é muito mais sofisticado no jogo que propõe do que um Michael Moore, por exemplo.

Moore, aliás, parece lembrança importante acerca de outro ponto muito mencionado sobre o filme: a questão política americana. E, aqui de novo, o ponto vai para o “repórter cazaque”. Enquanto Moore aposta numa lógica de tomada de posição um tanto simplória, que acima de tudo se comunica apenas com aqueles que já concordem com ela de saída, o jogo de Borat, com sua figura cômica aparentemente ingênua, é muito mais insidioso. Assim, não importa se estamos frente a feministas, políticos de direita ou pastores evangélicos: o que interessa mesmo é o desnudar das posições de autoridade que o personagem de Cohen naturalmente opera. Desta maneira, se Michael Moore era profundamente americano na sua oposição a George Bush, a posição de Borat/Cohen é a do estrangeiro que debocha – mas que também respeita muito os EUA. Não é por acaso, aliás, que certos momentos da sua viagem americana nos lembram muito o filme de Aki Kaurismaki, Os Cowboys de Leningrado vão à América: aqui, como lá, é menos caso de se ridicularizar um país, e muito mais de explorar as faces tão distintas de uma mesma nação que se impõe como referência cultural (e especialmente cinematográfica) de maneira tão presente no mundo todo (e que o filme retrabalha constantemente, como vemos na exploração das paisagens ou nas referências da trilha sonora).

Em meio a tudo isso, e voltando assim a uma referência do começo do texto, o cinema cômico que mais se assemelha ao de Sacha Baron Cohen/Larry Charles é mesmo o dos irmãos Farrelly. Seja na incrível sofisticação que se esconde por trás de suas narrativas ardilosamente simples/convencionais, seja na afirmação de um olhar sobre o mundo que passa por cima das barreiras do bom gosto, e prefere se escorar no que está além da aparência superficial (pensemos em Pamela Anderson aqui em relação à Gwyneth Paltrow de O Amor é Cego). É assim que a verdadeira fonte de poder do filme de Cohen/Charles está bem menos no que se refere aos limites do humor do que na força desta história que, ao final, une Borat e a prostituta Loenell numa cena incrivelmente bonita.


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