emulando Stan
Brakhage: fantasmagoria da expressão por
Luiz Soares Júnior
Stan
Brakhage, cineasta capital para o cinema americano (e mundial) centrado nas formas
não-narrativas, é um dentre tantos importantes nomes cujo acesso mais sistemático
à obra nunca nos foi permitido no Brasil antes das possibilidades do cinema
achado na internet. Esse texto se funda num recorte sobre sua obra: os filmes
nos quais o documento mobiliza a representação artística, em que a criação se
exerce sobre imagens tiradas da vida real (por mais complexa que seja a dimensão
do conceito de vida).
O documento para Brakhage não é um simples registro
a ser representado, mas a plataforma de uma reordenação fantasmagórica dos dados
do mundo,uma subtração do sentido à dimensão naturalista e sua conseqüente inserção
na ontologia. Uma coisa é fazer o que se chama genericamente cinema abstrato,
avant-garde ou qualquer outro termo genérico do tipo, em cima de conceitos,
estruturas, princípios a priori. Difícil é dar conta da massa indiscriminada
das impressões do mundo real e submetê-la aos padrões de uma conformação conceitual
e estrutural, como Brakhage intenta nesses filmes, nos quais a opacidade do real
oferece a resistência típica a qualquer alteridade. Ou seja: imprimir o selo da
subjetividade sobre um mundo irredutível a ela. Stan
Brakhage filmou nos anos 70 um conjunto de filmes chamado de trilogia de Pittsburgh,
cujo propósito mais evidente era a documentação de três instituições da cidade:
o hospital, a delegacia e o necrotério. The Act of Seeing with One’s Own Eyes
(ao lado) é o filme que se centra nas atividades do necrotério de Pittsburgh.
Uma coisa que sempre me impressionou, não apenas nesse filme, mas em outros como
Window Water Baby ou Dog Star Man, é o poder alquímico de Brakhage
em transformar dados de uma concretude inassimilável em estudos altamente sofisticados
sobre relações espaciais e temporais, cores e texturas. Em
um filme como The Act of Seeing with One’s Own Eyes, particularmente, essa
operação adquire os contornos semelhantes à arte de um Francis Bacon, que reflete
em suas telas a realidade e a re-apresentação da realidade em um mesmo traço,
de modo que o caráter grotesco da segunda enforme a primeira em uma diapasão monstruosa.
A contundência das imagens do filme nos coloca diante de um sujeito que não se
situa no nosso sistema convencional de percepção do mundo: ele desmistifica nossa
representação e, ao mesmo tempo, revela o que subjaz a ela. De que maneira estamos
próximos e irremediavelmente distantes do homem que se expõe ali? Tecnicamente,
o ritmo da montagem, o trabalho com a textura da imagem, o contraste entre a precisão
didática de uma parte e o tom de diatribe expressionista de outra são modos que
o cineasta utiliza para situar o espectador em uma estranha dialética de identificação
e estranheza. Nesse filme, o paradoxo fecundo da arte de Brakhage vem à tona de
forma radical: trabalhar de tal forma o símbolo de maneira que nele sejam deflagradas
forças que destruam todo o seu potencial simbólico. A partir do símbolo, temos
o acesso a uma experiência primitiva, inconsciente que arrasa o próprio sentido
da simbolização. Historicamente, fala-se numa grande influência
do expressionismo sobre a obra de Brakhage, sendo os seus primeiros trabalhos
colocados sob o signo de um psicologismo um pouco naif. É bom lembrar que
o conceito de expressão como fundamento da arte, inerente ao expressionismo, é
recente, e se identifica com o romantismo; implica a concepção do homem como mônada
fechada em si mesma, irredutível ao mundo, abrindo-se para ele e nele. Seu fundamento
está na subjetividade romântica. O classicismo nunca conheceu a vivência correspondente
ao princípio moderno de expressão. Ora, o expressionismo
é uma arte que testemunha a decadência da subjetividade, o impasse da expressão
num homem coisificado, que não se vê refletido nas obras que cria: o mundo moderno,
com seu quociente de alienação e reificação, favorece essa dislexia. O homem alienado,
estranho ao meio que o situa e às obras deste mundo, só consegue exprimir a fantasmagoria
de sua condição. Este é o homem visado pelo expressionismo; um romântico “sem
lugar neste mundo”, alguém que é detentor da possibilidade de expressão sem, no
entanto, conseguir acoplar a ela conteúdos legítimos, reais. O expressionismo
pode ser considerado, assim, como a experiência de um mundo sem experiência. Um
mundo no qual o sujeito, detentor da experiência, não mais se reconhece no mundo,
tributário da vivência. É como se a forma permanecesse, mas como uma casca oca,
sem corresponder a nenhuma realidade ontologicamente legítima. A
obra de Brakhage me parece radicalizar esse dilema. Num mundo no qual a expressão
(como atributo de um sujeito que representa o mundo, logo ainda tem contatos com
ele) perdeu todo sentido, o artista insiste em afirmá-la. Em exprimir. Mas esta
afirmação é aureolada de negatividade; ela expõe a sua própria impossibilidade.
O que resta a ser expresso é a ruína de toda expressão. Assim como no caso do
expressionismo, o sujeito e o objeto permanecem lá, mas envoltos em correntes
de forças e relações temporais que subvertem completamente a sua posição originária.
A passagem da pintura figurativa ao abstracionismo conheceu
esse mesmo processo histórico de rarefação e liquidação da subjetividade. Fragmentos,
despojos, rastros, traços. A montagem alucinada e o caráter de fluxo da ligação
entre os planos expõem um sujeito inteririço, disperso, atomizado. Brakhage pratica
uma estranha – e cada vez mais corrente – modalidade de romantismo, a consagração
da ruína do sujeito como o único ritual que é dado ainda à subjetividade celebrar. O
que é o princípio de fluxo de forças, adotado pelo artista na sua representação
do mundo exterior, senão a atomização do objeto – e do sujeito – numa dimensão
na qual eles não possuem mais a função assignada no universo cognitivo clássico?
Na qual tanto o sujeito como o objeto se reduzem a forças imantadas por um campo
de atração e repulsa, coação e refugo: Os corpos escalpelados de The Act of
Seeing with One’s Own Eyes são, literalmente, a máscara expressionista dessa
abdicação do sujeito ao seu trono convencional. O hieratismo celebrado ali é o
mesmo que preside aos rituais trágicos: máscaras que escondem máscaras, ritos
de exorcismo para abismos que “não ousam dizer o nome”. Trata-se uma subjetividade
que se alimenta de sua própria fratura, de um ideal de expressão subjetiva que
se constitui de seus próprios despojos. Seria essa a única forma de exposição
da subjetividade num mundo – o pós-moderno – que não encontra mais lugar para
ela? Subjetividade como ruína, como monumento fúnebre? O
estigma de um sujeito fragmentado aparece inclusive em um filme como Window
Water Baby, aparentemente um ritual de celebração da vida familiar, visto
que se trata da filmagem do parto da mulher do artista, em 1962. No entanto, presenciamos
um ritual de despersonalização que se parece muito com o efetuado no filme sobre
as autópsias. Do pai e da mãe, não vemos propriamente corpos, mas partes de corpos,
superfícies onde a luz incide: a vagina é um pedaço de carne intumecida e violácea.
Assim como The act..., não se trata de estruturas propriamente humanas;
vemos volumes, relações, intuímos profundezas, texturas. Corpos
são totalidades significativas, orgânicas, e são o fundamento de qualquer identidade;
ao mostrar fragmentos de corpos, e a rarefação destes fragmentos sob o efeito
da luz e da montagem, Brakhage nega a noção de identidade tributária a um corpo.
Os corpos e suas relações permanecem presentes, mas como rastros de um ideal de
representação inacessível ao homem de hoje. Para a subjetividade
fraturada do neo-expressionista que é Brakhage, restam os destroços de um corpo
pleno, total; a única totalidade a que ainda pode aspirar o corpo humano (e este
é o passo além dado pelo artista em relação ao expressionismo e seu romantismo
mórbido) é a integração do corpo (e do homem) num mundo outro, sugerido ali pela
forma onipresente, imanente da água. A dissolução dos corpos numa instância que
os ultrapassa (no caso, uma certa estilização da Natureza como cosmo e de identificação
do homem com este cosmo) é a única maneira de afirmar a presença deles; como presenças
em uma conjuntura na qual a presença se reduz a um traço rarefeito no horizonte
do mundo. A própria duração dos filmes denuncia o esforço;
um longa-metragem, à semelhança do romance, descreve uma espécie de “épica do
sujeito”, a trajetória de sua formação, desenvolvimento, coroamento. A intensidade
e a curta duração da maior parte de seus filmes interdita o acesso a qualquer
possível ascese do sujeito, e o relega ao papel de coadjuvante em um campo de
forças sísmico e diferencial. A obra de Brakhage, niilista e utópica, reflete
os impasses da representação do homem num mundo no qual as regras de identidade
e diferença foram substituídas por estratégias de deslocamento e fluxos; se ela
se recusa a nos dar respostas, o que é próprio da obra de arte, ela irisa nossa
percepção e mobiliza nossa vontade com as forças históricas mobilizadas nesse
processo. editoria@revistacinetica.com.br
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