in loco - cobertura dos festivais

Brand Upon the Brain! (idem), de Guy Maddin
(EUA/Canadá, 2007)
por Paulo Santos Lima

Um silêncio bastante palavroso

Não levar em conta o grande evento que a Mostra reserva com Brand Upon the Brain! neste dia 23 de outubro, no Sesc Pinheiros, é passar, talvez, um tanto longe do papel que a obra do canadense Guy Maddin tem no mundo. Nessa apresentação, as imagens serão projetadas enquanto os efeitos sonoros serão reproduzidos ali mesmo, com Marília Gabriela, também in loco, fazendo a narração. É uma reprodução das salas de cinema mudo, só que com as (im)possibilidades de hoje, ou seja, com largo apelo midiático, de rara e grande apresentação, relíquia cultural grã-fina – no Festival de Berlim, Isabella Rossellini, Cate Blanchett e Lou Reed foram o som do filme. Está claro, assim, que os trabalhos de Guy Maddin querem recuperar a experiência de outrora, mas com revestimento contemporâneo. O cinema pré-sonoro em escala superespetacular.

O que significa, portanto, que o cinema mudo, que primeiramente seria o fim do exercício cinematográfico de Maddin, é mais um meio. O fim seria o singular, um “singular” semelhante ao do inglês Peter Greenaway quando realizou seu teatro-instalação 100 Objetos para Representar o Mundo – ou seja, um trabalho contaminado de cinema mas de muitas outras coisas. Sem o artefato do espetáculo de palco, fica a experiência cinematográfica. E nesse sentido, a cabine de imprensa de Brand Upon the Brain!, com o áudio gravado na película, revela essencialmente a porção cinema do projeto: fazer um “filme mudo”, em chave fundida entre Dreyer e Feuillade, é algo tão impetuoso quanto banal.

No filme, todo rodado em PB (com um objeto e outro colorizados quase imperceptivelmente), temos as memórias dramáticas de um homem, e seu sentimento de opressão e encantamento que sofrera com os pais durante a infância. Ele é Guy Maddin (sim, homônimo do diretor, ou ele próprio), e sua tirânica mãe e pai cientista têm um orfanato numa ilha isolada. Estranhos casos ocorrem lá, o que traz ao lugar um casal de detetives (feito pelo mesmo ator), que despertará desejos em Guy e em bela sua irmã, Sis. Nisso, haverá desdobramentos, transmutações físicas, sugerindo desejos mais profundos entre irmãos, filho e mãe etc.

Essa sensualidade de corpos é tema já abordado no cinema experimental dos anos 20, ou até mesmo no Fellini dos anos 60 e seus personagens imersos em seus complexos de Édipo. Em meio a isso, o filme de Guy Maddin também passa perto dos filmes fantásticos da era silenciosa (Nosferatu, de Murnau, por exemplo), pois o pai cientista suga a energia vital dos órfãos, ressuscita, rejuvenesce a mãe etc. E haverá desdobramentos daqui. É inegável, diante desse material, que estamos num filme referencial que se utiliza de montagem e colagem, com eco distante do Limite de Mário Peixoto (mas sem o vanguardismo, pois o próprio momento histórico impede Maddin de fazer algo de ponta), ou da sensualidade à la Jean Vigo. Há muito de simbólico nessa construção de Maddin, tanto na concatenação de imagens como o que há dentro do plano, como vapores, doces, peitinhos, água espirrando. Tudo bastante estranho.

Ninguém faz um cinema tal, hoje. Mas a singularidade por si determina o êxito artístico de um filme, ou de uma obra? Jean-Luc Godard, Abbas Kiarostami, Béla Tarr, Apichatpong Weerasehtakul e Gus Van Sant são alguns exemplos de cineastas que também confeccionam um cinema único no mundo, obras cujos autores são percebidos com o bastante de um ou dois planos. Se essa especificidade diz mais respeito a algo pós-realização do filme, que são o nosso olhar e toda a produção mundial de filmes, antes disso, há o objeto em si, o filme. A exclusividade estilística, desse modo, é conseqüência de certos procedimentos adotados pelo realizador (a proposta estética é um exemplo).

Pois, afinal, até um Jean-Pierre Jeunet faz um cinema típico (não único, que fique claro, mas típico, detectável), e bastante problemático em suas colagens tableau. O que Guy Maddin faz é diferenciado, hoje, porque ninguém mais faz isso desse modo, e há, não podemos negar, momentos magníficos em algumas partes de seus filmes (A Mais Triste Música do Mundo, por exemplo), que merecem observação mais atenta. Mas, o resultado é sempre muito poluído, o que pode enganar nossa percepção. O fato é que este cineasta canadense faz um cinema de purgação de memórias, um cinema-terapia que, como qualquer consulta, revolve memórias e fatos tumultuosos sob muitas narrativas. E, no meio desse mar revolto e lotado de materiais, está o cinema mudo, aquele que seria o fim e o princípio de Maddin.

Outubro de 2007

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