ensaios - retrospectiva 2008
Um cinema em curso por
Daniel Caetano Para tentar traçar uma perspectiva
ampla sobre os filmes brasileiros exibidos em 2008 é preciso procurar neles as
linhas de força e as tendências que indicam. Me parece que há alguns fatores um
tanto enganosos em jogo, que podem acabar obscurecendo a visão dos filmes em si
e do que eles apresentam de mais interessante. Por esta razão, esse texto vai
procurar tratar de várias produções, às vezes de um modo injustamente apressado,
e eventualmente deixará de tratar de outros tantos cuja ausência só se explica
pelas lacunas de repertório deste redator. Este não é apenas um alerta retórico:
estou considerando que é preciso tornar isso explícito logo de início porque me
parece que algumas das tendências que serão apontadas poderiam incluir diversos
curtas e documentários, que assim se somariam aos poucos mencionados abaixo.
Digo
isso porque a visão mais apressada e enganosa poderia se limitar a observar os
exemplares mais destacados pela mídia - o sucesso de vendas Meu Nome Não É
Johnny, o pretenso oscarizável Última Parada 174, os internacionais
Linha de Passe e Ensaio Sobre a Cegueira ou mais alguns filmes incensados
pela crítica e por parte do público. Entre esses, vale notar o caso curioso de
Serras da Desordem (foto), que, por ter estreado no circuito Rio-SP somente
em 2008, parece trazer a este ano um brilho e uma força raros - que, no entanto,
não justificariam louros à safra, uma vez que o filme de Andrea Tonacci foi exibido
pela primeira vez em 2006 e estreou no circuito comercial em 2007 em Belo Horizonte.
Serras da Desordem é um filme impressionante, que dá brilho a qualquer
safra em que for incluído, mas talvez seja o caso de lembrar que foi outro o filme
de Tonacci que estreou em 2008. Tratou-se do belo média-metragem Benzedeiras
de Minas – um filme que parte do registro das benzedeiras do título para fazer
uma meditação sobre o poder da crença; uma meditação que, de certo modo, acaba
apontando para a analogia entre o papel das benzedeiras e o do artista: ambos
dependem da crença alheia na sua força para serem capazes de mobilizar os sentidos
e as coisas.
Uma outra visão ainda um tanto apressada poderia supor que
nada surgiu de interessante para além do que foi realizado por cineastas veteranos,
caso observasse tão-somente estes filmes de Tonacci já mencionados e alguns outros
como Cleópatra, Encarnação do Demônio, Os Desafinados, Falsa
Loura, Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais. É por isso que
quis começar este artigo lembrando que há numerosos curtas e documentários que
compõem o panorama da produção. É certo que, numa produção imensa de curtas em
vídeo e película, muitos deles não são bons. Mas há vários que apontam para um
sopro de renovação, em conjunto com alguns dos longas surgidos – por exemplo,
vejo um certo parentesco entre o curta Nas Duas Almas e os longas Amigos
de Risco e Ainda Orangotangos (apesar de este último se tornar bastante
engessado pela disposição banalmente virtuosística de trabalhar com um único plano);
um parentesco baseado nas perspectivas que estes filmes constroem sobre os personagens
e suas relações de afeto, relações que se mostram mais frágeis do que os personagens
desejam (porque parecem respirar somente através delas). O outro lado desta moeda
é o caminho do tom excessivo e desregrado de Se Nada Mais Der Certo, em
que as relações afetivas parecem se tornar as âncoras possíveis para seus personagens
viverem suas realidades. O que quero dizer é que existe, portanto, um movimento
de renovação, mesmo que ainda restrito por conta da baixa circulação dos filmes.
Esse movimento vem surgindo nos últimos anos graças a diversos fatores já bem
conhecidos: os novos esquemas de produção permitidos pela inovação do vídeo digital;
as movimentações aglutinadoras que acontecem em diversas cidades; e, é claro,
a inevitável passagem de gerações, acentuada pelo imenso número de cineastas estreantes
que surgem ano a ano. Desse modo, me parece inevitável que pouco a pouco aconteça
uma mudança de ambiente, uma transformação no cenário. É
verdade que, seja entre os produtores mais jovens ou já bem conhecidos, ainda
vemos surgirem eventualmente os filmes acorrentados a esquemas e enredos fechados
demais, a tal ponto que parece não haver espaço para a entrada de oxigênio
que permita ao espectador respirar, como acontece em filmes tão diversos quanto
Corpo, Os Desafinados, Chega de Saudade, Ensaio Sobre
a Cegueira ou, no mais lamentável dos casos, Última Parada 174 (e há
ainda o caso de Fronteira, que buscou explicitamente um ambiente de classicismo
arcaico). De certo modo, a melhor crítica a este estilo veio de um filme, Meu
Nome é Dindi (foto acima) – que, com um enredo delirante e simbólico e uma
movimentação lenta e circular, pareceu tirar tanto sua força quanto suas fraquezas
da relação original que cria com este certo classicismo, sabendo manter um certo
ar de improviso a uma narrativa com viradas de trama e de tom bastante explícitas
e determinadas. Mas
esta linha de produção que parece excessivamente arquitetada e fria conviveu em
2008 com movimentações tão diferentes quanto as que geraram filmes como O Fim
da Picada (foto) que, a partir de uma versão tupiniquim para o mito faustiano,
faz um retrato da vida em São Paulo em forma de pesadelo cômico; L.A.P.A.
(que se aproxima dos criadores de hip-hop, poetas de classe baixa, com fascínio
pelas vidas que levam e pelos lugares que ocupam) e os curtas Ocidente
(um filme que, com imagens à primeira vista simples de um casal de velhos num
trem e em seguida um casal de jovens, põe em jogo relações entre personagens,
geografia, memória e movimento) e Muro (que, por sua vez, traz personagens
dentro de um universo angustiante de agressão e culpa, apresentando imagens incrivelmente
fortes). Mesmo os veteranos
parecem reinventar seus estilos – e, neste caso, os maiores destaques são a Falsa
Loura de Carlão Reichenbach e a Cleópatra de Bressane. Curiosamente
transformadas em par devido às circunstâncias, ambas parecem dispostas a abrir
caminhos com sua beleza e capacidade de sedução: Silmara está disposta a entrar
num ambiente que não é o seu e por isso, somente ao final se dá conta de seu papel;
Cleópatra, ao contrário, parece saber que somente no seu próprio terreno pode
inverter os papéis e submeter o colonizador ao seu domínio. Ambas cumprem a sua
sina – porém, enquanto de Cleópatra temos uma trajetória grandiosa que se encerra
na derrocada, Silmara vê suas ilusões desabarem, mas ainda tem uma vida para levar
adiante. A nota desafinada no contexto se deve à sensação de falha que transmite
o filme de Walter Lima Jr. - uma sensação de falha que, a seu modo, faz justa
representação do desencanto nostálgico dos sobreviventes do período retratado:
Os Desafinados parece padecer da sensação de fracasso que hoje é própria
dos que acreditaram no projeto ipanemense de belas artes nacionais. Por
sua vez, também Encarnação do Demônio soube reinventar o personagem do
Zé do Caixão, trabalhando por uma última vez com a memória que o público teria
dele. Embora tenha sido o mais espetacular, não foi o único a se construir com
base na chave da memória: este também foi o caso de filmes como o média-metragem
Estafeta, sobre o cineasta Luiz Paulino dos Santos, cuja trajetória parte
do início do Cinema Novo e inclui uma forte experiência religiosa; do curta Ismar
– que, como uma versão infantil do final de Falsa Loura, encontra um personagem
que leva sua vida após uma grande desilusão quando era garoto; e o documentário
falseador Pan-Cinema Permanente, que usa a capacidade de seu personagem
em definir seu próprio papel para fazer um manifesto em favor da vida como criação
artística e do cinema como lugar de reinvenção desta criação. Dos
filmes já mencionados, a alguns ainda falta percorrer o circuito de salas comerciais,
embora já tenham sido exibidos em festivais – é o caso, por exemplo, de Amigos
de Risco, Se Nada Mais Der Certo e O Fim da Picada. Acontece
com eles o mesmo que aconteceu antes com Serras da Desordem – uma passada
de anos e mudança de “safra”. Também é o caso de Filmefobia – também um
filme falseador, como Pan-cinema Permanente, mas com outros objetivos e
estratégia: não é um documentário falseador como o filme sobre Wally Salomão,
mas uma ficção que se traveste de documentário falseador, ancorando-se num fascínio
real (reconhecido e pretensamente auto-criticado) em torno da capacidade que as
pessoas têm de sentirem medo e conviverem com isso. Filmefobia cria uma
máquina narrativa que se organiza como provocação e busca se eximir do seu percurso
através de uma auto-crítica: ao incluir a acusação de sadismo, feita por um personagem,
ele se impõe como questão e se permite tratar esta crueldade não apenas como estratégia
mas também como tema. Esta questão, justamente por tematizar o sadismo, gira em
torno da ambiguidade de suas cenas – que permitem o voyeurismo doentio
diante do que podem ser reações reais de fobia e, ao mesmo tempo, usam a estratégia
de levar o espectador a pensar se deve ou não se fascinar pelo que a narração,
em tom metafísico, chama de “única imagem verdadeira”. Estes
são apenas alguns dos filmes mais interessantes. Diante deste breve panorama,
me parece que basta lançar um olhar menos preguiçoso para que se constate um cenário
que, com seus pontos altos e baixos, está passando por um salutar processo de
transformação. Neste percurso, dentro de uma estrutura em que o acesso aos filmes
frequentemente não é fácil, é preciso ficar atento e ter disposição para encontrar
as jóias. Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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