debate
Brasília 18%, de Nelson Pereira
dos Santos (Brasil, 2006)
por Cezar Migliorin
A corrupção que nos torna inteligentes
No final de Brasília 18%, logo antes dos créditos subirem,
surgem na tela os dizeres mais significativos do filme, sobre
uma imagem de um pôr do sol: “isso é uma obra de ficção e qualquer
semelhança com fatos reais é mera coincidência”. E talvez seja
esse o maior problema do filme: tantos clichês sobre os bastidores
do poder (festas com prostitutas, adegas, machismo, corrupção,
violências, caixa dois e chantagens) só fariam sentido se não
fossem “mera semelhança”, mas sim um árduo trabalho de pesquisa
que contasse em uma hora e meia os bastidores e o funcionamento
dos tantos escândalos que a mídia nos informa, dando nome-aos-bois,
fazendo um cinema-denúncia de verdade – um “docudrama”, como a
crítica americana gosta de chamar filmes como Todos os homens
do Presidente, Um dia de cão ou Missing.
Ignorando as questões relativas aos modos de operar a política
no país, Brasília 18% torna-se mais um inócuo panfleto
que, se colocando de fora do que acusa, corrobora o lugar da mídia
e dos que se auto-denominam “homens de bem”. O problema é que
estes “homens de bem” são hoje os principais produtores de uma
profunda descrença no mundo e nas coisas. Para Brasília 18%
não interessa o que se move, o que age e as estéticas – múltiplas
- do político. O boçal senador que fala: “Precisava trazer um
homem honesto?” basta para o filme como estética e ética que explicam
o todo.
A famosa falta de esquinas e cotidiano da nossa capital é reforçada
por uma falta de tudo que não seja da ordem das negociatas e intrigas
sub-palacianas. Não há rua, nem cotidiano; o discurso é monocórdio
e em nada difere dos simplistas “é tudo corrupto!” Em que delícia
de mundo vivem esses homens que sabem apontar o dedo para os corruptos
e esquecem da política; tão mais complicada e complexa. A inteligência
repousa no que eles podem entender: este rouba, este transa com
prostitutas, esse corrompe. Tudo simples e lógico.
A facilidade dicotômica com que se opera esta partição entre
eu e o outro é o que possibilita a própria manutenção da corrupção.
Se não se é corrupto, estamos do lado do bem, o que simbolicamente
diz: o homem de bem não sabe, não lida e não atua no meio corrompido.Farsa.
Seria ótimo se o ilícito fosse só uma questão de caráter pessoal;
seria fácil a solução. A moral comum valeria para a política,
o que sabemos não é o caso. Talvez a grande política seja ainda
o lugar onde o outro não pode apenas ser tolerado; na política
as relações não se dão por tolerância, mas por convivência. O
que se passa no Brasil que a corrupção tem sido privilegiada como
forma de convivência? A moral comum destrói a política enquanto
os moralistas se vangloriam em destruir o estado. Neste sentido,
o filme corrobora com precisão a destruição de todo e qualquer
poder que não emane da grande mídia.
O retrato da situação narrada no filme aponta para duas coisas;
a corrupção explica tudo e ela é “A” política, deixando de lado
questões como: Porque não se faz política sem sujar as mãos, como
o personagem de Sartre (As Mãos Sujas)? Que democracia
construímos onde a corrupção é um modo de operar? Não chego a
concordar com o filósofo italiano Benedetto Croce quando diz que
uma “manifestação de vulgar ininteligência acerca das coisas da
política é a petulante exigência que se faz da honestidade na
vida pública”. Que a corrupção seja banida, mas a denúncia pura,
sem uma apreciação de suas condições de existência se desdobra
em imobilidade e esvaziamento do político. O que interessa é menos
a corrupção que os enunciados do poder, que não são uníssonos,
como quer fazer crer Brasília 18%. Neste sentido, Nelson
Pereira se mantém distante da noção do político e do social tal
como pensada pelo outro grande cineasta do cinema novo; Glauber
Rocha, para quem o social “é campo de batalha em que tudo se conecta
– a estética, a moral e a política – de modo a revelar confrontos
e alianças, sacrifícios e traições, deuses e diabos” (Ismail Xavier)
No centro deste ambiente podre está o personagem central, o
legista Olavo Bilac. Nele estaria centrado o conflito ético, o
olhar do estrangeiro; aquele que pode ver os vícios e se seduz
pelo que pode haver de encantador, porque ainda não conhece o
funcionamento das coisas. O estranho lugar de Olavo talvez pudesse
se afirmar como um tipo de circulação por Brasília que revelasse
outros mundos, outras éticas; mas não. Em teoria seu personagem
tem uma riqueza; as emoções do passado se confundem com os corpos
do presente e a recente perda da esposa lhe coloca distante da
realidade. A esposa morta reaparece, sensorialmente, em outras
mulheres, outras quaisquer; prostituta, aeromoça e a própria morta
que deve ser autopsiada por Olavo Bilac. A tentativa de uma ambigüidade
no personagem de Riccelli infelizmente se apresenta mais como
confusão. Para Olavo Bilac tudo parece realmente estranho naquele
universo, a poeira vermelha lhe encobre os olhos. Olavo é peça
central e sem querer sua ciência se vê perturbada por visões,
vozes, memórias e amnésias. Ele não pode se envolver muito, mas
aquele universo de Brasília não tem saída; a todos leva.
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