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Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente

Cidade dos pesadelos

Brasília 18%
chega ao espectador sob o signo da confusão: o mesmo Olavo Bilac que vê na aeromoça sua mulher recém-morta, ou que logo é interpelado por um “assessor parlamentar” no avião, sem entender as intrincadas tramas secretas que aquele homem vem jogar sobre ele, é o Olavo Bilac que atravessará o resto do filme o tempo todo sem certeza alguma sobre o que é sonho e o que é delírio, sobre quem são de fato aquelas pessoas que o circundam e o que elas desejam, e em última instância sobre o quê é o filme afinal. Não era de surpreender portanto, que o filme de Nelson resultasse num produto de nada fácil assimilação pelo espectador, e até mesmo por seus analistas: o filme não parece se prestar a nenhum dos jogos de ferramentas que ambos estão mais acostumados a usar para destrinchar as histórias que são apresentadas a eles.

Neste sentido, o filme de Nelson é o mais fiel que se poderia fazer ao jogo político brasileiro que surge em cada uma das suas seqüências: incompreensível na sua complexidade para qualquer um que não faça parte dele – e, mais do que isso, em muitas vezes aparentemente incompreensível mesmo para os que participam dele, que parecem fazê-lo mais por interpretar papéis quase inerentes ao palco onde estão. Não se deseja com isso inocentar nenhum dos participantes, mas sim ressaltar o papel determinante que interpreta neste jogo o seu cenário, ou seja, Brasília: projeto de cidade-modelo, sonho arquitetônico que se transforma em pesadelo pela combinação de um isolamento geográfico (que aliás fica bastante claro no plano dos créditos, que sobrevoa a cidade) com uma herança do poder à brasileira, que se tem suas especificidades corruptoras mórbidas numa cidade como o Rio de Janeiro, se torna uma patologia mortal a ser autopsiada num ambiente isolado, quase in vitro, como o da capital federal atual.

Curiosa história cíclica esta onde Nelson Pereira escreve um roteiro em 1993, morando nas vizinhanças da Casa da Dinda pós-Collor, e que vai tomar ares de uma contemporaneidade quase cronista no Brasil de 2006. Com uma diferença essencial, que Nelson percebe muito acertadamente: com o advento das transmissões ao vivo das CPI de 2005 nas TV Senado e Globonews da vida, foi dado um passo além no jogo da encenação do teatro do poder brasileiro, onde não faz o menor sentido reconstitui-lo realisticamente, pois o simulacro não pode fazer jus à teatralidade do real. Há que se apelar para a sátira (os nomes dos escritores que substituem os personagens; o momento brilhante da participação especial de José Marinho, “soprando” o discurso do títere-senador na CPI), mas acima de tudo para a fantasia, para o irreal. O mundo do dia a dia não dá conta de Brasília.

E é aí que o filme de Nelson Pereira toma um rumo altamente inesperado para quem acompanha a carreira dos dois cineastas, e se aproxima de forma quase umbilical do cinema de David Lynch. A Brasília de Nelson é o espelho da Los Angeles de Cidade dos Sonhos – Mulholland Drive (Los Angeles de onde vem o personagem de Olavo Bilac, aliás) – o que é deixado muito claro como analogia no próprio filme, quando Bilac chega numa festa e uma personagem diz que “Brasília é parecida com Los Angeles”. Só que aqui não se está falando de clima e umidade relativa do ar, e sim da atmosfera irreal e distante do mundo que caracterizam tanto o “mundo dos sonhos” de Hollywood (cujo caráter opressor Lynch tão bem representou) quanto o “teatrinho do poder” de Brasília.

Abundam no filme as seqüências em que Nelson se aproxima de Lynch: a referida festa, que lembra muito a de Mulholland Drive, as cenas nos bancos de trás dos carros (inclusive a melhor seqüência do filme, a que revela a incompreensível trama de assalto aos cofres públicos, com ar de chanchada burlesca – “ajudar os ceguinhos” –, tudo no retrovisor do motorista), os esquisitíssimos coadjuvantes que surgem em cenas isoladas que parecem se passar em lugar nenhum (a excepcional cena da conversa dos jornalistas, com sua iluminação marcada, lembra muito a do cowboy em Mulholland). Como se ainda precisasse mais, até mesmo o duplo das mulheres loira/morena está presente (Karine Carvalho/Malu Mader), secundado pela lolita-prostituta e o fantasma da mulher morta. De fato, as semelhanças com Lynch ultrapassam até os limites de Mulholland Drive, indo encontrar continuação no filme-gêmeo de Lynch, Estrada Perdida (a “curra consentida” da mocinha nada santa a que o herói assiste numa projeção – de uma fita VHS que misteriosamente surge no seu trabalho; a constante imagem dos carros cruzando estradas e ruas; a seqüência na cama em sua decupagem que engana e troca identidades; o já citado José Marinho que “sopra” as falas como o “demônio” em Lost Highway); e até mesmo no mais antigo Twin Peaks – e sua trama em torno da morte de uma jovem que revela as relações podres de uma cidade.

Como ao final dos filmes de Lynch, Bilac é cuspido pelo organismo que se chama Brasília – e como em Lynch apela para a fantasia (ou um vôo para a distância ensolarada com uma Malu Mader ao lado e uma garrafinha de uísque é para ser tomado como realista?). Vivo ou morto? Difícil saber, porque onde começa o pesadelo e onde termina a realidade em Brasília 18% nunca fica claro. Se os dois últimos filmes de Lynch funcionam na chave do apagamento da memória traumática pelo delírio, difícil saber sequer se Olavo Bilac algum dia esteve em Brasília. Pois tão irreal quanto a dos seus pesadelos, com seus políticos, assessores, capangas, jornalistas e legistas mancomunados num grande esquema é aquela de sonhos que parece sempre querer construir (a santidade da inocência da prostituta frente a quem se ajoelha, a assessora do Ministério que sonha estudar “a Dependência Econômica do Brasil” enquanto se nega a ser corrompida, a volta da mulher morta por “cair de pára-quedas” – como Bilac em Brasília).

O que é impossível de negar é que ao final, com ou sem Bilac, a estrada continua rumo à escuridão – e quase conseguimos ouvir a voz de David Bowie no fundo, na vazia sala de espera de aeroporto onde se esgoela na TV o “artista brasileiro”, envolvido até o pescoço nas maracutaias que denuncia.



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