in loco - cobertura do Festival do Rio
Breve vôo de um dia pela geografia
do cinema
por Paulo Santos Lima
Bamako
(idem), de Abderrahmane Sissako (Mali/França/EUA, 2005) – Panorama
Anfitrião & Convidado
(Bangmunja), de Shin Dong-il (Coréia do Sul, 2005) – Expectativa
Inimigos do Império (Ye Yan), de Feng Xiaogang (China,
2006) – Panorama
Essas pequenas viagens aéreas que fazemos nas
mostras são um bocado arriscadas, uma vez que nessa visão “en
passant”, tendemos a decretar realidades sobre toda a produção
de um país a partir de um filme. Desses quatro filmes aos quais
assisti hoje, posso dizer que o Mali faz dos melhores cinemas
do mundo (Bamako foi o melhor longa que vi até agora, ao
lado de O Céu de Suely); a Coréia, um cinema tanto preguiçoso,
porque escorado num razoável primor técnico, tradição da cinematografia
norte-americana; a China, superprodução espetaculosa; e os Estados
Unidos, sintomas da banalidade da vida vertidas em cinema malandramente
rústico. Vamos lá...
Bamako é um filme-improviso. Seus planos
parecem mais mostrar que construir imagens, às vezes vizinhos
de um primeiro cinema, com câmera fixa, ou câmera que ainda engatinha
movimentos mais audazes. O que, nesse caso, é notável, porque
essa parece ser a estética possível para se visitar a brutal realidade
africana, depenada pelos países desenvolvidos, FMI, Banco Mundial
etc. Levar uma câmera e construir uma narrativa seria uma aventura
incerta, portanto, ou até mesmo uma hipocrisia para uma região
assolada pela miséria. Daí que Abderrahmane Sissako opta por esse
estilo mais “rústico” para falar do tribunal no qual os países
africanos processam os grupos financeiros mundiais que os esfolam
com a cobrança das suas dívidas externas.
O
julgamento ocorre em Bamako, Mali, num “tribunal” ao céu aberto,
por entre as casas e disputando espaço com o cotidiano daquelas
pessoas. Uma imagem entre o absurdo e o surrealismo: este tribunal
improvisado, que é tão improvável quanto um parque aquático no
deserto. Explica-se, por aqui também, a opção estética do filme.
E há a inserção de um western dentro da estrutura, quando
uma família assiste à TV – e é incrível como aquilo que é ficção
na diegese espelha o que é real na diegese e no mundo. Uma múltipla
camada cinematográfica, e também o que há de mais maneirista nessa
estética tão severa com a qual é filmado Bamako.
Por fim, Sissako passa longe da coitadice: não
há “miséria ONG” e seus personagens, mesmo na corda bamba econômica,
são altivos, intelectualizados, vigorosos. Professores, intelectuais,
doutores, todos negros e africanos, auxiliados por um único francês,
armam grande articulação, que culmina na mais longa e bela seqüência
deste filme, quando um nativo, em dialeto local (não francês,
não colonizado) discorre sobre os problemas, numa oralidade que
se vale mais pela voz do que pelo verbo. E, ao final de tudo,
Bamako não tem escapatória, e diz que o problema da África
é um grande problema, colossal e de extinção incerta. Um filme
de grito, cujas imagens gritam.
Depois de Bamako, fica difícil engolir
uma rasteira discussão anti-Bush (não por ser anti, claro, mas
por não voar muito alto no ataque). Mas, pelo menos Anfitrião
& Convidado é um filme cinematograficamente assistível,
com a regularidade que de resto têm marcado a passagem do cinema
coreano por aqui. A decupagem corresponde ao fluxo que o filme
determina, o uso da câmera, a construção dramática em alguns casos.
Os projetos mais “artísticos” coreanos muito raramente erram (e
confesso que, quando erram, a coisa é bem feia, como o engodo
O Arco, de Kim Ki-duk) e os de gênero se viram bem, ainda
que meio reciclagens do que é feito no cinema ocidental.
Mas
é essencial lembrar que os exemplos que chegam aqui, de fato,
são poucos diante da larga produção daquele país. Por isso a presença
de um Anfitrião & Convidado é valiosa para derreter
certos mitos. O filme de Shin Dong-il possui uma câmera por vezes
esperta na sua busca de enquadrar e criar sentidos. Um cáustico
professor de cinema fica trancado no banheiro e é salvo por um
adolescente carola que tenta converter as pessoas ao cristianismo.
Ambos são professores, portanto, e se cria a partir de então uma
relação quase de pai pra filho, de um comunista cético com um
crente, da razão com a fé.
Só que, metade dos rolos transcorridos, o que
antes era a imagem de Bush no jornal torna-se um proseado discursivo
sobre o caos do mundo atual. O moleque fará discurso anti-guerra
olhando para a câmera, o professor vai se engalfinhar com um executivo
bushista dentro de um táxi, um duro diálogo no bosque entre os
dois novos amigos discutirá o quanto a religião e a razão podem
resolver o mundo. O filme ingressa nessa militância, verbalizando-se
ao extremo. Se há um trabalho visual satisfatório, apreço nos
ambientes onde estão os personagens (registrados “naturalmente”,
inclusive com som ambiente), o blablablá político sacrifica este
que é um filme, no conjunto, razoável – pelo menos no panorama
desse festival.
Em
seguida, descobrimos que a China também namora o cinema de ação.
Com precisão, caso deste Inimigos do Império, mas sem a
distinção de Ang Lee (O Tigre e o Dragão) ou o rigor da
mise-en-scène matemática de Zhang Yimou (Herói,
filme de que não gosto nem um pouco, mas que, nesse jogo de armar
tabuleiro visual, é bem eficiente). Feng Xiaogang não filma mal,
se pegarmos como régua a mise-en-scène e a montagem fazendo
notável o diálogo entre os planos. Mas o lamê cenográfico, transpirando
a superprodução, é a grande questão deste herdeiro torto do wuxia
pian que fez a tradição do cinema de luta chinês. Vertendo
para as plagas chinesas a história de Hamlet, a câmera
de Feng faz balé expressivo com as lutas coreografadas (aquelas
mesmas que se tornaram um timbre com Ang Lee e Zhang Yimou, com
chinês flutuando e se espadando no ar). Herói, como eu
disse, faz notadamente um tabuleiro (brega) na relação câmera-espaço,
além de apresentar itens simbólicos, como espadas, panos verdes,
vermelhos, flores etc. Inimigos do Império faz o mesmo,
mas é a cenografia (acompanhada de espadas, coroas que fazem qualquer
adereço de escola de samba parecer prêt-à-porter, pétalas, máscaras
etc) e a novelice que marcarão a linha estética do filme. Os constantes
planos abertos e gruas que o digam.
Admiração Mútua é o contrário disso:
opta pelo minimalismo. O tom baixo, naturalista, é a chave do
cinema independente norte-americano; algo pensado, na maior parte
das vezes. E daí que em filmes como este, de Andrew Bujalski,
fica claro que a liberdade cassaveteana é uma intenção, não um
resultado. Mas sobre esse filme, que tem coisas a serem retidas,
falarei amanhã, após assistir a A Cada Manhã, outro título
americano tido como promissor em Sundance. O que é um perigo.
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