in loco - cobertura dos festivas

Brilho de uma Paixão (Bright Star),
de Jane Campion (Reino Unido/Austrália, 2009)
por Julio Bezerra

O amor romântico

Alguns casos de amor são como obras de arte. A relação entre o grande poeta romântico John Keats e sua vizinha Fanny Brawne durante o século XIX tem lugar de destaque neste salão da fama de amantes. Estamos em plena Inglaterra do século XIX. Ele não foi reconhecido em vida: não tinha posses, vivia de favor na casa de um amigo. Ela simplesmente não podia casar com ele. Jane Campion (O Piano e Em Carne Viva) fez dessa história um belo e despretensioso filme. Brilho de uma Paixão é a mais pura ilustração daquilo que para nós, em pleno século XXI, significam os românticos. Aqui, os românticos (que dirá os poetas românticos) são figuras líricas que divagam pelos céus cinzentos da Inglaterra. Vez ou outra seus devaneios são interrompidos por espasmos brônquicos e algumas imagens de lenços brancos com manchas de sangue. Cada troca rápida de palavras e olhares transmite uma certa violência, como se, envenenado pelo mal do amor, um coração pudesse literalmente quebrar.

A construção narrativa é simples e convencional. Uma vez localizados o espaço e o tempo, e apresentados os personagens, os conflitos se desenvolvem centrados na relação entre o poeta e Fanny. A estrutura clássica já aponta, desde o princípio do filme, as personalidades. A opção é menos pela surpresa de caráter psicológico ou sociológico e sim pelo desenrolar de acontecimentos que remontam a uma época marcada por tradições, discriminação social e romantismo. As primeiras cenas marcam um ritmo cômico curioso do tipo "batalha dos sexos" entre Fanny (Abbie Cornish) e Charles (Paul Schneider), o melhor amigo do poeta (Ben Whishaw). A facilidade com que Campion mostra o poder de afirmação das mulheres em tempos de repressão é uma raridade no cinema. A cineasta nos mostra quão condescendente os filmes de época são, mesmo com as suas maiores heroínas. Grande diretora de atores, Campion encontrou na Fanny de Abbie Cornish a figura mais carismática e auto-confiante de sua filmografia, tão confortável em sua própria pele, tão completa e realizada antes mesmo da descoberta amorosa.

Dentro de seu quadro convencional, o filme administra suficientemente bem suas modestas formas e intenções, especialmente quando desencadeia o tipo de prazeres sensoriais que Campion no seu melhor pode oferecer. Na verdade, este filme soa como uma transição. Como na maioria de seus filmes, Brilho de uma Paixão centra suas atenções em uma figura feminina e se afirma em uma exploração sobre o desejo, independência e relações amorosas. Mas Campion jamais pareceu tão focada. A idéia aqui é registrar o nascimento de um amor e sua morte induzida. E assim, este seu mais novo longa é de uma frontalidade talvez inédita em sua filmografia. A cineasta faz uma aposta em seus personagens e sentimentos: a câmera, a música, a montagem, todo o aparato cinematográfico se encontra a serviço deles. Campion e seus atores conseguem extrair dos personagens uma espécie de serena tensão entre a ânsia pelo eterno e a consciência febril da própria mortalidade. Algo que marca os melhores momentos desse filme, como a cena em que Fanny e sua irmã mais nova, Toots (Edie Martin), enchem o quarto de borboletas. A beleza dessa seqüência é de uma fragilidade comovente.

Brilho de uma Paixão é recheado de sentimentos. Mas isso não o torna sublime. Os poemas são recitados em diversas ocasiões, embora jamais em um sentido de imersão. Campion faz uso extremamente calculado dessas recitações. A cineasta parece assumir que os poemas de Keats são sublimes e auto-evidentes. Brilho de uma Paixão se mostra reiteradamente intoxicado pela capacidade da arte em criar beleza, mas Campion não está interessada em como essa beleza ganha forma. Muito pelo contrário. A cineasta confronta a obra e algumas explicações biográficas. Talvez seu filme careça de um sentido de exploração pessoal que marca a filmografia da Campion. Talvez exista uma espécie de vazio que surge entre o desejo do filme para comunicar o esplendor das obras-primas de Keats e sua opção em não focar nem o gênio, nem a labuta que os produziu. A impressão é de que esses caminhos seriam obstáculos a essa história de amor. E acompanhar Keats poderia talvez refutar a teoria por ele defendida nesse filme de que a poesia deve vir "tão naturalmente como as folhas de uma árvore". As legendas finais sugerem que Fanny consagrou sua vida à memória de Keats. Ela, no entanto, se casou e teve três filhos. Todos, aliás, ficaram ricos com a venda da correspondência com o poeta que ela de forma sensata guardou. As ironias da vida.

Outubro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta