Bruna Surfistinha, de Marcus Baldini (Brasil, 2011)
por Rafael Castanheira Parrode

A Rede SocialFalsos corpos de plástico

Em Bruna Surfistinha, o diretor Marcus Baldini filma um conto de fadas, em que Bruna é uma espécie de heroína dos nossos tempos. Adolescente entediada com as banalidades de uma vida classe média, e bulinada na escola pelos colegas algozes, Raquel se transforma em Bruna para tentar fugir das convenções que tanto lhe perseguem. Bruna Surfistinha, um super-herói - com direito a codinome, uniforme e superpoderes. A identidade criada por Raquel para enfrentar o mundo é exatamente uma armadura contra todas as suas fraquezas e fantasmas. Escondida dentro dessa fantasia, Bruna (a Surfistinha que nunca surfou), com seu poder de seduzir os homens - quase uma ninfa do mar com seu canto que hipnotiza os pescadores -, vence todos os seus inimigos, para ao final casar-se com seu príncipe encantado. Raquel, que queria ser Bruna para confrontar a hipocrisia de uma sociedade moralista e conservadora, ao final - no que ficaremos sabendo apenas por um letreiro - se casa com um cliente numa espécie de "e viveram felizes para sempre".

Baldini não opera nenhum distanciamento ao observar a personagem pela qual seu filme se inspira. Ao filmar uma autobiografia, escrita pela própria Raquel/Bruna, ele opta pela condescendência: o olhar da câmera se apropria do olhar da própria personagem, e o que veremos será uma espécie de diário filmado - algo que é reforçado pela sua narração em off, recurso que potencializa ainda mais esse olhar condescendente do filme sobre o objeto filmado. Evita-se o atrito, as faíscas que de certa forma poderiam incendiar seu material. Apesar da falta de pudor de algumas sequências, o diretor mantém um olhar carola que nunca consegue ir além de sua personagem. Sua câmera fica restrita àquele mundo, alheia e passiva a um registro vazio de corpos que buscam a sublimação através de uma pseudo-liberdade que mais aprisiona do que liberta. O que é Bruna Surfistinha se não um filme de superfície, que enxerga apenas corpos, que registra o físico sem jamais espelhar a alma? Aliás, quem é Bruna Surfistinha se não a própria construção de uma imagem falsa erigida por Raquel Pacheco, uma personagem criada por ela para encarar o mundo? Bruna é um objeto; mulher-objeto. Já Raquel, nunca saberemos quem é. Dela só veremos um reflexo, um rascunho.

A Rede SocialDifícil não pensar em Buñuel e seu olhar transgressor em A Bela da Tarde, e principalmente em Carlos Reichenbach e seu distanciamento moral mas ao mesmo tempo tão cheio de carinho em Falsa Loura. Carlão filma a mulher por trás da puta. Baldini filma a puta! Bruna Surfistinha acaba alienado, preso numa carapaça que renega toda uma contextualização política e social que, para Reichenbach, acaba sendo essencial. Esse espaço que Carlão dá à sua personagem, essa fabulação que ele cria em torno dela, a maneira como ele filma a nudez dos corpos, suas fragilidades, serve como espelhamento da alma e não a uma superficialidade alienante e vazia da imagem como em Bruna Surfistinha. A imagem do gozo banalizado, do corpo indefectível, sem marcas, sem história. Nesse sentido é sintomática a opção do filme pela superficialidade da imagem. Deborah Secco - ela própria a personificação da mulher-objeto - aparecerá (semi) nua em boa parte da projeção. E não só ela: uma profusão de corpos desnudos, de ângulos que exploram o contato carnal, a luxúria dos personagens. A representação monossilábica da família. O esvaziamento dos conflitos. Aqui o corpo é só um corpo, um objeto de troca, um produto de mercado. A nudez de Deborah Secco não espelha o mesmo desamparo e a desilusão do corpo de Rosanne Mulholland em Falsa Loura, pois é corpo sem espírito.

Bruna Surfistinha é um filme extremamente desconectado com o mundo, com o pathos, a condição feminina, sua exploração diante do desejo masculino. Por que em momento algum Raquel se desvencilhará de suas amarras morais e sociais. Sua fuga, sua rebeldia não a levarão a superar os dogmas que ela quis confrontar, e por isso sua atitude de enfrentamento acabará reduzida à chave da futilidade, da leniência e da alienação. A mulher será reduzida a um mero corpo sexual que vai, aos poucos, se afogar na própria luxúria para depois dar a volta por cima e se acomodar novamente nos moldes da sociedade que ela mesma condenou - numa sequência banal ao som de "Fake Plastic Trees" do Radiohead. A música tenta ironizar, bem no finalzinho, o que o filme não se permitiu em nenhum momento durante toda a projeção.

A Rede SocialBruna Surfistinha é então um filme sobre uma fantasia. Uma máscara, e nunca sobre quem está por detrás dela. É a personagem da personagem, vagando em torno de si própria; exercício autocentrado e por isso mesmo tão vazio. Baldini não busca entender quem é Raquel Pacheco e sua gradual transformação em Bruna. Ele não cria uma relação de simbiose mais profunda e mais afetiva com sua personagem. Ele não se interessa pelo além-do-corpo. Apesar de ser um filme que se gaba por não fazer julgamentos morais, por não condenar seus personagens, que se gaba por assumir o erotismo e a nudez sem pudor - com direito a uma sequência de "chuva dourada" - Bruna Surfistinha não poderia ser um filme mais careta.

Março de 2011

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