Bubble (Bubble), de Steven Soderbergh
(EUA, 2006)
por Cléber Eduardo

Experiência controlada

A estratégia de lançamento de Bubble, de Steven Soderbergh, teve um efeito duplo e paradoxal. O diretor conseguiu amplo espaço na mídia impressa americana ao disponibilizar o filme ao mesmo tempo nos cinemas, na tevê a cabo e em DVD, sem respeitar a tradicional espera de alguns meses entre a exibição nas salas de projeção, a chegada às locadoras e a inclusão nas grades das emissoras. Se a controvérsia gerada por esse lançamento "três em um" ou "um em três" deu visibilidade a um projeto de orçamento modesto, com características potencialmente apreciáveis apenas por um segmento específico de espectadores, por outro lado também ofuscou o filme por tratá-lo quase como um pretexto para a polêmica. A cine-mercadoria obteve lugar privilegiado na imprensa nessa guerra por espaço na vitrine audiovisual. Já a cine-obra foi geralmente tratada como secundária. Não se trata aqui de constatar se a forma da cine-mercadoria de inserir-se no mercado modelou os traços distintivos da cine-obra ou se esses traços da cine-obra foram pautados por essa forma de inserção da cine-mercadoria. Interessa o que está na tela.

Em primeiro lugar, situemos Bubble em Soderbergh, diretor de percurso pendular, que oscila entre projetos para grandes estúdios (Onze Homens e um Segredo, talvez seu melhor filme), trabalhos com setas indicativas sobre suas ambições experimentais (O Estranho, Full Frontal) e produções  híbridas, que buscam a conciliação do vínculo industrial com a assinatura personalizada (Traffic, Erin Brokovich). Bubble estaria mais para a vertente experimentalista do cineasta, mas, ao contrário de suas outras incursões nesse diapasão, ele não lança mão de abstrações e labirintos narrativos. Pelo contrário, a narrativa é linear. A dinâmica é de cena com atores, de conversas, e não a dos fragmentos em colisão. Nenhuma poesia ou jogo de linguagem. Tudo é da ordem da experiência, do fenômeno miúdo, do cotidiano, da observação da vida, dos gestos, das tensões e das afeições – mas com um olhar frio, quase clínico, que procura escancarar o artifício de seu suposto realismo. Apenas dois momentos, no qual se faz uma gracinha com a luz, alterando-a sem corte na imagem, destoam desse espírito.

Embora se perceba um grau bastante evidente de programação, tanto dos diálogos e da construção dramática como da composição das cenas, é notório também o grau de espontaneidade surgido na filmagem. Bubble parece ser um típico caso de filme que, apesar de ser guiado por um roteiro, tem na relação da câmera com os atores, dos atores com o espaço e do enquadramento com o tempo seu motor e combustível. Os atores não profissionais, da própria região onde se filmou, alcançam efeitos distintos, sem homogeneidade de estilo. Há uma interpretação quase robótica (a mulher gorda), outra balbuciante (a do jovem com síndrome de pânico), outra bastante consciente da interpretação (a da mocinha), ou à vontade nessa consciência (a do ex-marido da mocinha). Pode-se pensar em várias outras experiências nessa linha, mas com outros propósitos: dos psicodramas de Jean Rouch à musicalidade idiomática de Jean Marie Straub e Danielle Huillet, sem com isso esgarçar a estratégia da câmera com os atores, procurando zonas sombrias ou desconhecidas dessa relação. No entanto, em um ou outro momento específico, como na reação do pai à prisão da filha, algo de estranho acontece, um descontrole dentro do controle, uma faísca de xeque-mate nessa dinâmica. Respeita-se e procura-se, aparentemente, em momentos como esse, o processo mais que a eficiência (ou o método em vez do resultado). A reflexividade não berra, mas se faz notar.

Soderbergh está interessado em "como filmar" as ambigüidades presentes na relação de seus três personagens principais. Mesmo com os personagens não falando nada de relevante para ouvidos exigentes ou mesmo para a construção do universo dramático, as cenas de conversas parecem pensadas e executadas como pretexto para se fazer uma geometria de olhares e um manifesto pelo extracampo, com a câmera valorizando as expressões de quem ouve e não as de quem está a falar. Há talvez uma crença bazaniana, quase mesmo bressoniana, em uma imagem com poder de revelação – seja a revelação de um olhar durante alguns instantes, seja a exibição de objetos tradutores de um determinado espaço. É quase óbvia a disposição do diretor de empregar enquadramentos planejados para instalar os personagens em recortes sintéticos de determinado universo americano. Isso explica o uso de grande angulares, do formato cinemascope e de alguns planos abertos, nem todos exatamente harmônicos ou bem estetizados como quer o diretor, que adora baixar a câmera para fazer o contra-plongée com ares artísticos (traço distintivo desde sexo, mentiras e videotape, talvez para saudar Orson Welles).

As imagens de Bubble são pistas, tenuamente organizadas, sobre como vivem as pessoas representadas, como elas representam seu segmento social, como se anestesiam na mediocridade de expectativas e de repetições de experiências (o trabalho na fábrica de bonecas), como podem explodir em determinada circunstância. Embora seja quase inevitável lembrar de Twin Peaks, a série gestada e gerida por David Lynch, não há aqui os absurdos não realistas. Pelo contrário, a solução, antes envolta em mistério, deixa tudo à vista, às claras, ou a hipótese da imagem-prova estaria ameaçada. E talvez seja isso que falte a Bubble: a ameaça a seu dispositivo, ao ordenamento de suas experiências sem sentido inicial, ao clichê na representação do americano simples e atual, com toda a carga de angústia e sonambulismo em torno dessa representação, que se alia a um cinema auto-proclamado como artístico e independente, típico dos anos 80 em diante, geralmente apoiado na apatia da imagem e não em uma imagem da apatia.  


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