Budapeste,
de Walter Carvalho (Brasil, 2009) por Rodrigo de
Oliveira Os
fantasmas se divertem
Budapeste é um filme
dirigido pelo fotógrafo mais idiossincrático do cinema brasileiro, baseado no
melhor livro do músico mais unânime da cultura brasileira, e ainda assim tem uma
cara inevitável de “filme de diretor de arte”. Não que o caráter decorativo dos
cenários seja muito alardeado, que a direção de arte chame toda atenção para si
como o bom gosto distorcido de um filme de época qualquer. A questão aqui é da
necessidade de objetificação mais pura e simples. Esse cinema sobre o trabalho
criativo de escritores tem sempre a tarefa complicada de revelar estados de alma
e humores que desaguam, inevitavelmente, na criação de palavras e não na construção
de imagens per se (ainda que as primeiras evoquem as segundas). O recurso
da narração em off como uma “voz de Deus” está amplamente espalhado por
Budapeste, mas nem ele parece de fato um desdobramento literário comum
disso que é, para Walter Carvalho, intraduzível de um meio para outro. Sobretudo
por tratar de uma transformação espiritual que se manifesta por uma troca de línguas
– e nisso o esforço de Leonardo Medeiros em desfiar um húngaro quase perfeito
é decisivo –, quando tenta se explicar na banda sonora, o protagonista não faz
mais do que criar um objeto novo a mediar a relação do filme com aquilo que há
nele de “infilmável”, por assim dizer. Nesse sentido, é curiosa
a aproximação que Budapeste faz de um certo cinema de realismo fantástico.
Via de regra, essa deturpação da literatura fantástica lida exatamente com a idéia
daquilo que não se pode filmar, que pertence ao domínio da psique, do delírio
coletivo ou da pura sobrenaturalidade, mas que ao mesmo só pode existir como tal
quando é materializado, quando lhe emprestam alguma carga de “terrenidade”, porque
o fantástico precisa ser mundano para exercer os efeitos que exerce. Com Walter
Carvalho, o caminho é sempre inverso, e é a partir do que há de mais mundano que
se tenta alcançar este espaço de suspensão. As interferências podem ser francamente
ridículas (quando se anuncia a crise criativa do escritor e sua vontade de transformação,
eventualmente de língua, ele está comendo uma sopa de letrinhas, filmada em close
acintoso), ou apenas tiques citacionistas, como na estátua partida de Lênin que
cruza o Danúbio do mesmo jeito que um dia a víramos em Um Olhar a Cada Dia.
Diferença abissal entre homenagem e homenageado, lá Theo Angelopoulos gastava
muito mais tempo filmando a margem do rio, onde uma centena de pessoas corria
atrás da embarcação para acompanhar a passagem em sua extensão, e aqui o desejo
é sempre pelo objeto: por mais que José Costa esteja ali testemunhando aquele
acontecimento (e o próprio acontecimento supostamente nos ilumine em relação à
sua relação com a nova vida escolhida no exterior), é a estátua que merece a seqüência
mais ensandecida de planos, a partir de todos os ângulos possíveis, organizados
em velocidade publicitária – uma maneira de justificar o gasto da produção, claro,
mas antes de tudo uma filosofia de sempre se desviar para a matéria quando o que
interessa mesmo é se falar sobre o imaterial. Que
o corpo de José Costa seja matéria pura, que as mulheres que preenchem o filme
estejam sempre disponíveis enquanto superfície (para o nascimento do desejo na
matriz psicanalítica mais clássica, ou como tabula rasa para a escritura de um
livro, tanto faz), que a própria aparição da língua húngara tenha sua força ligada
à forma muito mais que ao sentido, isso não interessa a Budapeste. Não
à toa, Walter Carvalho parece incapaz de filmar uma sequência de sexo ou observar
o corpo de uma mulher nua sem que haja um espelho em cena para o qual a câmera
enviesada possa apontar. E até se poderia dizer que isso não passa de uma tentativa
de transliteração, de viciar o olhar do filme nesta mesma fonte que parece tão
prazerosa ao escritor protagonista, sua natureza de duplo eterno condicionada
pelo trabalho de ghost-writer. A passagem aqui é menos do alfabeto da literatura
para o do cinema que o de José Costa para o filme que se faz sobre ele, mas esta
aparente confiança nas pulsões do protagonista é usada apenas quando conveniente
(os objetos são melhores quando vêm aos pares, e dá-lhe duplicações entre Rio
e Budapeste, mulher brasileira e mulher húngara, filho brasileiro e filho húngaro,
escritor anônimo e estátua de escritor anônimo). E conveniência
aqui quer dizer simplesmente um medo de olhar: no cinema há sempre o risco de
que, uma vez olhada, a cena retribua o olhar para você, e é dessa troca que Budapeste
se ressente. A relação que José Costa vive com as mulheres, sobretudo na marcação
muito forte das diferenças entre a experiência do amor num país e noutro, tem
um potencial francamente doentio (muito maior do que, por exemplo, ser perseguido
por uma estátua assombrada, de tintas polanskianas), algo que talvez não
víamos no cinema brasileiro desde O Passado, com todos os defeitos que
Hector Babenco e Walter Carvalho dividem aí. Mas o abalo que uma investida real
neste universo pode provocar – “terror e tremor”, dizia Serge Daney – talvez fosse
forte demais para ser segurado por uma encenação tão dedicada ao artifício, tão
interessada em ser um parque de diversões por onde os fantasmas se divirtam sem
nunca se confrontarem. Quando a câmera finalmente aparecer no plano final do filme,
refletida num espelho, já não teremos dúvida: ela está ali para servir de carrossel
de emoções, acompanha os altos e baixos sempre com a certeza de que está confortavelmente
segura num trajeto definido, cíclico e com hora para acabar. A câmera de Budapeste
monta a cena. Montar nela, tentar domá-la enquanto ela se debate
por caminhos imprevisíveis (e com a possibilidade sempre constante de ser derrubado
dali de cima), esse é um idioma que ao filme não interessa nunca dominar. Junho
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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