Possuídos (Bug), de Wiliiam
Friedkin (EUA, 2006) por Leonardo Mecchi
A
sublime paranóia de FriedkinPartindo de uma
peça de teatro e concentrando sua ação em praticamente uma locação, Possuídos
poderia facilmente resvalar no chamado teatro filmado. No entanto, basta a cena
de abertura para dissipar esse receio. O filme se inicia com uma tomada rápida
de um corpo estendido em um quarto prateado, quase futurista. Corta para uma tela
escura. O toque de um telefone, close do aparelho conforme ele é atendido por
uma voz feminina. Silêncio do outro lado da linha. Corta para uma tomada aérea
do deserto, um helicóptero se aproximando de um prédio (um motel, descobriremos
mais tarde). O telefone volta a tocar insistentemente. Em off, a mesma
voz feminina atende. Silêncio. Ela bate o telefone e xinga. Essa
pequena descrição está longe de fazer jus ao mistério e, de certo modo, sensualidade
dessa belíssima cena de abertura. Com recursos puramente cinematográficos, William
Friedkin instaura desde o início o universo misterioso em que entramos, além de
já desvelar um dos principais eixos do filme: a ameaça que o mundo exterior impõe
ao avançar sobre personagens traumatizados e auto-exilados. A própria presença
desse plano aéreo inicial já emula parte do mistério do filme e impõe uma série
de dúvidas ao espectador: o helicóptero utilizado na tomada é apenas um recurso
técnico da produção ou um elemento diegético? Sendo diegético, ele realmente existe
ou é apenas parte do delírio psicótico daqueles personagens? Se existe, justifica
a paranóia observada? Se é fruto de delírio, como pôde originar aquelas imagens
iniciais? O próprio filme instala essa dúvida, ao trabalhar o barulho de um ventilador
como o ruído de um helicóptero a espionar aquele ambiente – apenas um exemplo
da importância da edição de som na obra de Friedkin (e neste filme em particular). Essa
relação íntima do filme com a paranóia de seu protagonista reforça o caráter quase
epidêmico desta. A paranóia de Peter contamina não apenas Agnes, mas a própria
imagem, que oscila entre a adesão (no abalo causado pelos helicópteros) e a negação
(na recusa em materializar a imagem dos insetos). Com sua edição precisa e seu
admirável trabalho de som, Friedkin, no auge de sua forma, nos coloca no centro
desse processo de enlouquecimento (em especial nos últimos 15 minutos, onde acompanhamos
em tempo real o processo irreversível de descolamento entre aqueles personagens
e a realidade) – a ponto de temermos pela sanidade dos próprios atores, que trabalham
constantemente no limite entre o sublime e o ridículo. Há
ainda em Possuídos uma forte e ameaçadora relação com a tecnologia – seja
na paranóia de Peter diante de qualquer tipo de maquinário (o alarme de incêndio,
a TV, o “médico-robô”), seja na forma da tecnologia militar supostamente desenvolvida
para a incubação dos insetos em seu corpo – que nos remete ao cinema de Cronenberg.
Ao menos no imaginário de seus personagens, há também aqui a típica remodelação
cronenbergiana do corpo humano pela tecnologia (no caso uma biotecnologia, por
assim dizer). Entretanto, como tal reconfiguração se dá, em última instância,
por uma espécie de auto-flagelação dos próprios personagens, a aproximação com
o cinema de Cronenberg se dá tanto por A Mosca quanto por Spider,
já que em Possuídos a batalha a ser travada se encontra na mente de seus
personagens. Como muitos filmes pós-11 de setembro, Possuídos
será visto por muitos como um estudo sobre a paranóia atual da sociedade norte-americana.
Possuídos pode até servir a isso, mas é também muito mais. A potência inegável
do filme de Friedkin se deve menos a seu suposto retrato preciso do zeitgeist
contemporâneo do que à maneira como trabalha questões atemporais como a dor da
perda, o medo da solidão e a necessidade de se encontrar uma lógica (ainda que
perversa e distorcida) para se explicar o mundo aparentemente desconexo em que
vivemos. Isso, e a maestria com que o diretor constrói seu tour de force
cinematográfico. editoria@revistacinetica.com.br
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