Caché (Caché), de Michael
Haneke (França, 2005)
por Leonardo Mecchi
Imagem sob suspeita
Um grande artista utiliza suas obras para retratar
e questionar não apenas a contemporaneidade em que se inscreve,
mas também a própria linguagem que utiliza para se expressar.
Com Caché, o diretor Michael Haneke atinge essa rara combinação
e confirma que é dos mais interessantes diretores europeus em
atividade.
Empregando o mesmo expediente utilizado por David
Lynch em A Estrada Perdida, Haneke extrapola a questão
da desestruturação que tal vigilância causa na vida de seu protagonista
para abordar a própria natureza da imagem. A imagem, em Caché,
é um de seus personagens principais. Diferentemente de O Vídeo
de Benny, filme de Haneke de 1992, que também utiliza a reprodução
de imagens realizadas por “terceiros” dentro do filme, as filmagens
que são exibidas ao espectador em Caché não se diferenciam
da realidade ficcional, o que coloca em xeque toda e qualquer
imagem. Tal artifício faz parte de um processo, proposto pelo
diretor, de “re-educação” do espectador diante da obra.
Quando observamos o plano geral inicial do filme,
esperamos, por convenção, que um plano mais detalhado, possivelmente
contendo os protagonistas da história que iremos acompanhar, se
suceda. Mas tais convenções cinematográficas são quebradas por
Haneke e nos deparamos com uma imagem na qual não podemos confiar.
Contraditoriamente, em um tempo onde nossas vidas e identidades
estão cada vez mais vinculadas e determinadas pelas imagens, Haneke,
assumindo um neo-platanismo, nos trás a desconfiança diante delas,
sem deixar ele mesmo de manipulá-las para nos enganar. Desde o
início do filme somos levados a questionar reiteradamente a natureza
do que vemos: serão a representação de uma realidade diegética
que ocorre naquele exato instante ou imagens gravadas anteriormente
sendo vistas por um dos personagens? Ou são ainda memórias ou
recordações do protagonista? Quem, afinal de contas, é o autor
das imagens que vemos diante de nós? Ou melhor, quem editou tais
imagens?
Pois é disso que trata Caché, um filme
sobre edição, sobre o que as pessoas deixam de fora, sobre o que
elas não dizem. Todos têm algo a esconder: Georges, Anne, seu
filho Pierrot. E são essas informações escondidas que serão responsáveis
pelos conflitos internos e externos dos personagens. Assim como
Georges edita seu programa de TV, também suas memórias são editadas.Tudo
o que sabemos do relacionamento entre Majid e Georges o sabemos
através de sonhos, flashbacks subjetivos de Georges. Uma vez mais,
não podemos confiar nessas imagens. E se Georges estiver ocultando
algo? E se o que fez a Majid foi algo pior do que suas lembranças
lhe permitem recordar? Curiosamente, as imagens que Georges recebe
através da fita são quase sempre de planos fixos, sem cortes.
Nesse sentido, seriam imagens mais “reais”, mais verdadeiras do
que suas lembranças (pois não manipuladas) e por isso possuiriam
tal poder desestruturador.
Mas a questão principal, o mcguffin (“pista
falsa” que o diretor coloca num filme para atrair atenção do espectador
para uma determinada questão) que prende o espectador à narrativa
e que motiva as ações dos personagens, é quem estaria enviando
tais fitas. Tal questão permeia todo o filme, permitindo interpretações
variadas. Majid ou seu filho, em um ato de vingança, seriam os
responsáveis pelas gravações que aterrorizam Georges? Ou o próprio
protagonista – ou ao menos seu subconsciente culposo, personalizado
na imagem de um fantasmagórico Majid ainda criança que surge durante
o filme – estaria inconscientemente se traindo com tais fitas?
Ou Haneke, tal qual um deus sádico, seria o responsável por tais
filmagens? Há até mesmo um pequeno detalhe na cena final do filme
que permite outra interpretação, a de que Pierrot, filho de Georges,
estaria também ele envolvido de alguma forma no envio das fitas.
De qualquer forma, Haneke não está preocupado
em solucionar tal enigma, e a ausência de respostas claras faz
parte de uma posição política do diretor, que já declarou anteriormente
que “quanto mais radicalmente as respostas são negadas ao espectador,
mais ele vai procurar sua própria verdade”. Mais importante do
que o autor dessas imagens é a conseqüência que elas causam. Nesse
sentido, as fitas são catalisadoras de um estudo sobre o comportamento
humano, sobre nossas reações quando ameaçados ou acusados.
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