pariscópio
A arte política de Sophie Calle
e Avi Mograbi
por Cezar Migliorin
Eruv,
instalação da artista plástica francesa Sophie Calle, e Vingue Tudo, Mas Deixe um dos Meus Olhos (2005), documentário
de Avi Mograbi, cineasta israelense (apresentado em Cannes em
2005, fora da competição, e no festival É Tudo Verdade
deste ano - foto ao lado), são trabalhos que de maneiras distintas
abordam a questão Israel/Palestina, estabelecendo linhas de continuidade
e de ruptura entre o presente da relação e as tradições e mitos
religiosos judaicos. .
A exposição de Sophie Calle é atualmente apresentada no Museu
de Arte e Historia do Judaísmo, em Paris. Neste trabalho, assim
como na maioria das obras de Calle, trata-se de construir um dispositivo
para que o acaso possa atuar e para que a artista perca o domínio
sobre as imagens e narrativas que constrói. Mas, antes do dispositivo
da artista, há o dispositivo que a artista fotografa e que compõe
a parte mais forte do trabalho.
Proibidos de trabalhar durante o Shabat, os judeus
são também proibidos de levar consigo objetos como chave, guarda-chuvas
e bolsa para fora do espaço privado, isto é, para fora de casa.
Entretanto, cidades cercadas de muros, como Jerusalém, são consideradas
um domínio privado, tornando assim possível o transporte desses
objetos para fora de casa. Atualmente, poucas são as cidades cercadas,
- mesmo Jerusalém é bem maior fora dos muros do que no interior
deles. Por isso, mesmo em Jerusalém existem os Eruv. Os Eruv são
fios estendidos no topo de postes de madeira que demarcam um determinado
espaço e fazem o papel dos muros nas cidades onde eles não existem,
formando assim um “espaço privado”. Em uma grande cidade isso
pode significar um diâmetro de vários quilômetros: em Jerusalém
são 130 quilômetros de Eruv, chegando a 4500 quilômetros em Israel.
Sophie
Calle fotografou os postes que sustentam os Eruv e expõe 15 dessas
fotografias, com um poste em cada, em quatro paredes – formando
assim um novo “espaço privado”. Vemos no interior deste novo “espaço
privado”, criado pela artista, pequenas fotos de lugares ordinários
de Jerusalém e depoimentos impressos de judeus e palestinos que
narram como um determinado lugar da cidade – espaço público –
ficou marcado por uma história pessoal. Na mais traumática das
narrativas, uma mulher conta como perdeu uma perna ao ser atropelada
aos 7 anos por um ônibus da linha 18. Desde então toda a linha
passou a ter um sentido muito particular para ela. As histórias,
no total de catorze, se sucedem e estabelecem uma tênue relação
com algumas das pequenas fotos colocadas sobre de um mapa de Jerusalém.
Para entrarmos no Museu de Arte e Historia do
Judaísmo há uma fronteira bastante mais sólida a ser transposta
do que a dos Eruv: a dos seguranças, portas blindadas, detector
de metais e raio X. Algo mais ostensivo – e provavelmente mais
seguro – que o controle em um aeroporto internacional. Na entrada,
ao passarmos por esta fronteira povoada por homens de terno escuro
e micro-escutas no ouvido, já percebemos que não estamos em um
museu qualquer, mas em uma área de conflito, no território de
um país em guerra. Note que não se trata de um museu de arte e
história de Israel, mas aqui as coisas se confundem.
Ao chegarmos à sala onde Sophie Calle expõe seu
trabalho o choque entre as duas fronteiras se concretiza: por
um lado os Eruv, estes toscos fios estendidos em pedaço de pau
garantindo uma fronteira simbólica aos crentes e a possibilidade
de “burlarem” a religião mantendo-se fiéis a ela, por outro a
força física da entrada na fronteira que separa o museu do resto
da cidade. Uma força física que a exposição de Sophie Calle desnaturaliza
– quase que à revelia – e nos faz lembrar as fronteiras em que
cotidianamente o Estado de Israel humilha os palestinos os impedindo
de trabalhar, ir ao hospital, lavrar a terra, levar os filhos
na escola.
Esta humilhação imposta aos palestinos nas fronteiras
de Israel e a relação com os mitos da história judaica são o tema
do brilhante filme de Avi Mograbi, Vingue Tudo, Mas Deixe um dos Meus Olhos. Aqui
há uma montagem que segue três caminhos que não cessam de dialogar:
No primeiro, Mograbi trata dos suicidas judeus, através de dois
episódios mitológicos: filma no local o mito de Massada, contado
para jovens judeus americanos. Nesta narrativa histórico-mitológica
há uma forte defesa do destino dos 960 judeus que, ao se verem
cercados pelos romanos em 73dc, optam por um suicídio coletivo
em vez de se entregarem ao inimigo. O segundo episódio de suicídio
heróico é o de Sansão. Em uma escola, Mograbi acompanha o aprendizado
do mito: depois de ser traído por Dalila, ter seus cabelos cortados
e ser aprisionado sem a sua força pelos Filisteus, Sansão, amarrado
entre duas colunas, roga a Deus pela volta de suas força. Recuperando
sua força extraordinária, Sansão desloca as colunas provocando
a queda do palácio, sua morte e a de milhares de inimigos. Do
alto de Massada, um grupo de crianças reproduz um suposto grito
dos judeus aos Romanos que os cercavam: “Romanos, nós não nos
renderemos” – e o eco retorna potente, vindo das bandas de Gaza:
“nós não nos renderemos”. Como dizem os jovens judeus em Massada:
“Se eu vou ser derrotado no combate, melhor eu me matar e levar
vários inimigos comigo”.
O
segundo movimento do filme acontece nas fronteiras Israel/Palestina.
Alí Mograbi filma a humilhação, as reclamações e, na última seqüência,
interpela de maneira violenta alguns soldados que não permitem
que crianças palestinas atravessem a fronteira para ir à escola
nem lhes informa a que horas a fronteira será aberta. Por trás
desta humilhação o suicídio também está presente – não daqueles
de Massada, das dos homens-bomba que encontram na morte uma última
forma de enfrentar o inimigo.
Avi Mograbi é a terceira linha deste filme. Com
uma câmera colocada à sua frente, ele fala ao telefone com um
palestino que parece ser um amigo. Esta seqüência volta várias
vezes durante o filme: Mograbi mais ouve do que fala, não é especialmente
simpático, e às vezes olha para a câmera. O quadro em que Mograbi
se filma nesta conversa tem ainda algo de significativo, pois
ao fundo vemos o corredor de sua casa por onde passa uma mulher,
uma criança, depois a mulher novamente que arruma alguns livros.
O quadro revela uma intimidade entre a conversa e o ambiente familiar.
Parece quase um acaso aquela seqüência ter sido feita e estar
no filme. Nesta conversa, o amigo de Mograbi diz coisas que têm
os suicidas como pano de fundo: “Os palestinos estão pensando
que viver desse jeito não faz sentido...”; “A fronteira entre
a vida e a morte aqui é muito tênue”. Mograbi ouve e diz que prefere
a vida, o embate com ele é mais silencioso, respeitoso. Quando
o filme acaba a tela se escurece e com uma cartela Mograbi dedica
o filme a seu filho que se recusa a entrar na guerra. A cartela
acaba dando uma dimensão privada da própria guerra. Entendemos
assim a opção pelo plano com a vida doméstica ao fundo.
Mograbi, de maneira explicita, encontra uma maneira
forte de expor as contradições entre Israel e a história dos judeus,
bem como as linhas de continuidade entre os suicídios de Sansão
e Massada e os homens-bomba palestinos, enquanto Sophie Calle,
poeticamente, refaz uma tosca fronteira simbólica que soa tão
absurda quanto as sólidas fronteiras israelenses que hoje transformam
Gaza em uma prisão. Calle e Mograbi, de maneiras distintas, fazem
uma arte política explicitando e pensando as repartições de lugares
na vida e na cidade, as fronteiras, simbólicas e violentas, os
consensos repetidos cegamente, como o suicídio de Sansão e os
dissensos provocados pela arte ou pelo filho de Mograbi.
editoria@revistacinetica.com.br
|