in loco
Dia 6: Parem as rotativas + pequenas decepções na Quinzena
por Eduardo Valente

Completou-se hoje a primeira metade da Competição, na qual já tínhamos passado pelos filmes que nos decepcionaram um tanto (My Blueberry Nights), os que não nos surpreenderam em nada em seus problemas (Zvyaguintsev, Ulrich Seidl, Reygadas, Kim Ki-Duk - sobre os dois últimos escreveremos nos próximos dias) e até mesmo os que surpreenderam positivamente – seja pela descoberta de um cineasta de futuro (4 Luni, Tehilim), a doçura e aposta em sua proposta (Chansons d’Amour) ou pelo retorno de cineastas já um tanto desacreditados entre nós (No Country For Old Men, dizem que Zodíaco). No entanto, estava faltando uma coisa neste Festival: o filme que nos balança na cadeira, e que nos coloca siderados por um bom tempo após sua conclusão. Pois segunda foi dia de dose dupla destes, vindo de dois concorrentes americanos que já levaram sua Palma de Ouro antes (aliás, curioso que quase todas as Palmas norte-americanas pós-89 estão aqui: os Coen, Tarantino e Van Sant, além de Michael Moore e Soderbergh fora de competição – só faltou mesmo David Lynch).

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Death Proof, de Quentin Tarantino (EUA, 2007) – Competição

Uma confissão abre este comentário: assim como antes de ver Kill Bill Vol.1 eu tinha medo de que Tarantino tivesse caído vítima de sua própria fama e influência no cinema mundial pós-Pulp Fiction e que o filme fosse apenas uma enorme auto-celebração (o que foi completamente negado ao fim da primeira vez que vi um dos dois episódios – que acho, ambos, fantásticos), eu temia por esse Death Proof com a impressão de ser apenas uma enorme brincadeira sem pique, uma vontade de ser enfant terrible e nada mais. Pois, mea culpa, e lição aprendida pela última vez: por mais que o Tarantino-figura pública me pareça às vezes um pouco exagerado e personagem de si mesmo, o cineasta Tarantino é realmente um dos maiores da atualidade – e continua sendo.

A experiência de ver Death Proof é de uma catarse quase inacreditável – e o principal segredo para isso é que Tarantino não se contenta em fazer uma homenagem com algo de paródico de um determinado cinema tipicamente americano, mas sim embarca numa dupla jornada de: 1) fazer um filme de fato segundo várias das “regras” daquele cinema, um cinema físico, radical, absolutamente anti-establishment; 2) mesmo incorporando vários traços de uma época (anos 70), fazer questão de trazer este gênero para hoje – não só com determinadas inserções de símbolos da modernidade plenamente incorporados e centrais na narrativa (sms, por exemplo) como principalmente em vários temas e comportamentos mesmo dos personagens que subrepticeamente vão marcando o filme. Como resultado disso, voltamos ao velho ponto que diferencia Tarantino da imensa maioria dos seus diluidores: para ele, mergulhar neste caldo de referências pop/trash não é questão de superfície, de ser cool, mas sim de uma crença profunda (e, por isso, emocionante) no autêntico significado daquele universo, daquelas imagens, daqueles subconscientes mesmo.

Por isso mesmo, talvez, Death Proof seja, muito ao contrário da brincadeira desatenta que eu imaginei, o filme que Tarantino sempre esteve se preparando para fazer. Um filme onde tudo o que era “elogiável” mesmo para a alta cultura cinematográfica em seus filmes anteriores (a cronologia desmontada, o caráter um tanto épico das suas narrativas, a presença de grandes atores-símbolos) fica para trás (ou no mínimo um tanto de lado), e o que importa mesmo é o movimento, são as imagens, são os sons, a música, a completa imersão do espectador numa catarse constante banhada de sexo, de violência, de artifícios, de identificação, de cinema enfim. Death Proof é antes de tudo isso: cinema, puro e simples, o tipo de espetáculo que simplesmente não poderia ser (re)produzido por nenhuma outra forma de arte. Por isso tudo, e muito mais (a ser dissecado com calma no futuro), é um filme grandioso – mas provavelmente sem qualquer chances de ganhar um prêmio em Cannes. Se for assim, tanto melhor.

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Paranoid Park, de Gus Van Sant (EUA, 2007) – Competição

Depois da trilogia de enorme ressonância que realizou nos últimos anos (Gerry, Elefante e Last Days), o grande trunfo deste novo filme de Van Sant é justamente o de manter algumas das características mais fortes desta fase mais recente, mas conseguir fugir do perigo da repetição preguiçosa, incorporando uma série de novos elementos e retomando outros tantos do seu cinema anterior.

Antes de tudo, está de volta de forma marcante a idéia da construção de personagem a partir de uma perspectiva que inclui a psicologia como elemento fundador – na sua trilogia anterior, o trabalho foi muito mais de investir no deslocamento dos corpos, na presença física e na interação, sem tanta preocupação com o que pensavam, e mais com o que faziam os personagens. Pois em Paranoid Park temos de volta até a idéia de uma voz off em primeira pessoa (herdada do livro que deu origem ao filme), que nos coloca desde o começo dentro da cabeça do protagonista, através de cujos olhos acompanhamos a trama. Assim, um dos elementos herdados da trilogia (a repetição de determinadas cenas em momentos distintos) ganha desta vez um chão mais firme (não querendo dizer que seja melhor, diga-se): o fluxo de memória do garoto que passa por um evento traumático.

Nesta volta a uma estrutura dramática mais tradicional, o que não mudou um centímetro foi o apuro com os aspectos de construção de imagem e som no cinema de Van Sant. Só que, ao invés do Harry Savides de seus filmes mais recentes, temos aqui a volta de Christopher Doyle (fotógrafo principalmente conhecido pelo seu trabalho junto à Wong Kar-wai – embora justamente não tenha feito o filme deste que abriu Cannes este ano), que trabalhara com Van Sant em Psicose. Doyle traz para o filme alguma de suas marcas registradas, como as cenas em câmera lenta e o apuro com o detalhe que beira o fetichismo visual – mas apenas beira. Doyle manteve dos últimos dois filmes a opção por trabalhar no formato “quadrado” de tela (1.37), algo que dificilmente é reproduzido nos cinemas, mas que na enorme sala Lumiére em Cannes possui uma força invejável.

Principalmente porém, o que mantém-se de mais forte é a entrega da câmera de Van Sant às imagens do jovem americano comum, o desejo de filmá-lo de frente, de entender (mas não explicar) o que o move, o que o angustia, o que o excita, o que o assusta. E aqui está de volta a abertura de Van Sant para a complexidade de uma vivência onde a narração de um desenho animado pelo irmão mais novo se iguala em importância aos questionamentos sobre a guerra no Iraque feitos pela melhor amiga; onde a primeira vez sexual se torna evento tão forte quanto uma morte acidental; onde a presença de pais, tios e professores não precisa ser nem um pouco doentia para que seja menos distante, difícil de atingir/entender. Há neste cinema de Van Sant um efeito quase paradoxal de atingimento de uma verdade profunda através de uma forma incrivelmente não preocupada com convenções de realismo de encenação/montagem. O resultado é mais uma pequena jóia de um cinema que nos comprova de novo que a preocupação com o como se filma não é nem nunca precisa significar uma oposição ou negação da importância com aquilo que se quer filmar.

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Ploy, de Pen-ek Ratanaruang (Tailândia, 2007) – Quinzena dos Realizadores
Chop shop, de Ramin Bahrani (EUA, 2007) – Quinzena dos Realizadores

Apesar de alguns filmes estarem sendo até bem elogiados, parece que neste ano Olivier Père e a Quinzena dos Realizadores não tinham uma quantidade de filmes realmente fortes em mãos, e a Quinzena certamente não está virando tantos pescoços quanto no ano passado. Em parte isso se deve ao fato de que alguns destes diretores “meio do caminho” (ou seja, que já fizeram filmes que atraíram atenção para eles, e agora confirmariam ou não seiu possível status no cinema) simplesmente realizaram filmes mais fracos que os seus anteriores. Se isso já tinha sido o caso com Danielle Arbid, hoje foi o dia de confirmar a mesma sensação com dois realizadores já exibidos no Brasil pelo Festival do Rio.

Primeiro, o tailandês Ratanaruang, que teve seu (irregular, mas com belos momentos) Last Life in the Universe exibido no Rio há 3 anos. Este seu novo filme traz como tema a dificuldade de manter a vida em um casamento (e o uso dos 7 anos como marca nos lembra Billy Wilder), e como marca a concentração da narrativa em praticamente uma só locação (um hotel em Bangok). É um de vários filmes em Cannes que têm afirmado uma forma rápida e barata de fazer filmes – o que, como podemos ver aqui, nem sempre assegura qualidade. O problema principal do filme de Ratanaruang é que na passagem que faz de um cinema mais observacional das relações no começo para um cinema que tenta mesclar sem distinções realidade, fantasia e pesadelo, o cineasta nem se sai totalmente bem numa parte nem na outra – e com isso parece mais formalista até do que realmente é, porque não conseguimos acreditar de todo no que encena. Há, de novo, momentos de força (especialmente quando a jovem Ploy do título está em cena), mas no geral o filme se aproxima perigosamente do “cinema falsamente profundo” de um Kim Ki-duk.

Já do iraniano radicado em Nova York, Bahrani, vimos ano passado Man Push Cart no Festival do Rio: filme que se aproveitava bastante bem visualmente da paisagem novaiorquina noturna e dos périplos sofridos do seu personagem, numa articulação ficcional bem forte com o seu passado. Neste novo Chop Shop (outro filme filmado rapidamente, aliás - embora após longa pesquisa) mantém-se o interesse pelos “excluídos” de Nova York, desta vez do outro lado de uma das pontes da ilha de Manhattan, no Queens. O que o filme tem de mais forte, aliás, é a exploração da paisagem deste local entre o abandono e a terra sem lei, marcada pelas oficinas de desmonte de automóveis que lembram a Baixada Fluminense. O problema é que tanto dramática quanto cinematograficamente, Bahrani faz pouco mais do que buscar um realismo-naturalista francamente óbvio acerca da dureza do cotidiano de um menino que luta para ganhar a vida, cuidar da irmã (mesmo esta sendo mais velha) e tentar encontrar um projeto de futuro. Nosso acompanhamento deste núcleo não tem a profundidade de tratamento audiovisual nem de construção de personagem-trama de Man Push Cart, e com isso ficamos com a impressão que conformar-se em fazer um documentário sobre este espaço talvez resolvesse muito melhor as aspirações do jovem Bahrani do que a execução desta ficção que, no fundo, nunca deixa de ser refém da realidade.

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