in loco Dia
9: Perto do esgotamento total + Tehilim por
Leonardo Sette
Não
é sem um algum sentimento de dívida com o leitor que reconheço meu esgotamento
físico e a dificuldade de passar para páginas de word as idéias que, apesar
de tudo, não param de surgir após cada sessão desse festival de Cannes. Vale admitir
também a dificuldade de permanecer acordado em algumas sessões e o risco claro
de receber alguns filmes de forma distorcida por esse cansaço. Prevendo um pouco
esses fatores e estando pela primeira vez em Cannes, optei por contribuir com
impressões pessoais intermitentes, sem me preocupar muito com um lado que seria,
digamos, mais jornalístico. Claro, beneficio-me da experiência
e da maior capacidade de síntese do parceiro Eduardo Valente, que desempenha naturalmente
a tarefa de relatar com mais amplitude o perfil que vai se desenhando dessa edição
do festival. Porém, como a intensidade da reflexão diante dos filmes é bem maior
que a rapidez na redação, não deixa de ser frustrante que essas limitações guardem
fora daqui boa parte dessas idéias, assim como o fato que nem sempre concordamos
nas análises, eu e Valente (caso dos filmes de Honoré, Gray e Kawase, por exemplo)
– embora a sintonia predomine de maneira espontânea. Outra
frustração é saber que os textos escritos entre projeções e cercado de barulhentos
jornalistas estão longe de bem construídos ou mesmo gramaticalmente aceitáveis.
Mas pouco importa, termino achando. Fica o relato de alguma reação imediata ao
que vamos vendo, a cada dia, e o desejo que isso pareça interessante, de algum
jeito, ao leitor que estiver acompanhando. * * * Tehilim,
de Raphaël Nadjari – França, Israel, EUA, 2007 No
meio disso tudo, é logicamente difícil falar sobre Tehilim (cuja tradução
aproximada seria Os Salmos), visto já há alguns dias e muitos tantos filmes atrás.
Pessoalmente, lembro com carinho de um filme refinado, belo e de certa forma misterioso.
Posso também dizer que é um dos filmes menos calorosos da competição oficial,
filme que pareceu não gerar nem muito entusiasmo nem repúdio no público de Cannes. Nascido
em Marseille (1971), Raphaël Nadjari iniciou sua carreira em Nova Iorque, onde
realizou três longas-metragens antes de se instalar em Israel e rodar Avanim
(2003), e agora Tehilim – o mundo judaico, e em especial a família, como
tema central de seu trabalho. Em seu novo filme, Nadjari acompanha o cotidiano
de uma família de classe média em Jerusalém, filmando não atores de uma maneira
que alguns descreveriam como próxima do documentário – improviso em parte das
cenas + câmera na mão, solta e livre. Há
um inegável carinho pelos personagens em Tehilim e, talvez alimentado por
ele, Nadjari escolhe não se posicionar em qualquer parte entre ortodoxia e laicismo
dentro do judaísmo – nesse sentido, a família de que vemos em Tehilim pode
seria religiosamente intermediária, segundo o próprio Nadjari. O pai, Eli, é um
religioso dedicado, sua esposa menos, enquanto o filho mais velho participa de
cerimônias mas abandona o quipá na hora de sair com os amigos. Numa manhã como
outras, Eli leva seus dois filhos à escola e a um certo ponto, sem razão aparente,
o carro vai parar fora da pista, num leve acidente. Menachem, o filho mais velho,
sai para buscar ajuda e ao retornar com a polícia, encontra o irmão mais novo
sozinho – o pai desapareceu, não se sabe como. A
estranha beleza desse filme começa nesse acidente – o desaparecimento – que priva
violentamente a família de um de seus membros e do próprio direito ao luto, forçando
os que ficaram a se debater diante da espera e da falta de respostas. O interessante
é que ao teor absurdo e excepcional dessa perda, Nadjari opõe uma encenação tranqüila,
melancólica e intimista – compondo uma evolução predominantemente morna, apenas
vez por outra pontuada por breves momentos de intervenção musical – o acidente
e o desaparecimento são construídos como episódios praticamente banais. O cineasta
realiza assim algo próximo de um lento lamento, enquanto observa seus personagens
buscando reunir pedaços de estrutura pessoal e familiar. Em
grande parte, o interesse de Nadjari parece se dirigir à maneira com que cada
personagem se relaciona com a fé, através ou não da religião, especialmente nesse
momento de dor. O pai e o irmão de Eli, como ele religiosos mais ativos, decidem
imprimir cópias do livro dos Salmos e distribuí-las para que as pessoas rezem
pelo retorno de Eli. Já Menachem e seu irmão se lançam num ato mais aventureiro,
que poderia ser visto como um sinal de autêntica fé em oposição à solenidade ortodoxa
dos mas velhos. Mas o olhar de Nadjari nem se posiciona nesse sentido nem declara
a extravagância dos meninos como simples ato ingênuo e juvenil – há de certa forma
um elogio à essa fé intuitiva e desesperada. Por sua vez, os mais velhos não aparecem
como caquéticos ortodoxos, nem tampouco como lúcidos adultos senhores da situação.
É portanto através de uma composição atenciosa a personagens multidimensionais
que Nadjari compõe esse filme delicado tocante, no qual as tensões político-religiosas
vividas em Israel terminam comentadas, de maneira refinada, no implacável silêncio
sobre o desaparecimento do pai. editoria@revistacinetica.com.br
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